Que eu saiba, Curso Intensivo de Jardinagem (&etc., Maio de 2010) marca a estreia literária de Margarida Ferra (n. 1977). Uma boa surpresa num ano que tem sido especialmente generoso para a poesia portuguesa. De resto, há a notar nos últimos anos, desde logo, a emergência de uma série de vozes poéticas femininas que têm garantido a salutar “desonra do convento”. Assim de repente, lembro-me dos livros de Ana Salomé (n. 1982), Catarina Nunes de Almeida (n. 1982), Filipa Leal (n. 1979), Joana Serrado (n. 1979), Margarida Vale de Gato (n. 1973), Renata Correia Botelho (n. 1977) ou Rute Mota (n. 1980). Outros haverá que agora me escapam, com maior ou menor relevo e receptividade. Quanto à poesia de Margarida Ferra, tem merecido inusitada atenção para um livro de estreia. A beleza do livro justifica-o, uma beleza acolhida com inquestionável felicidade na capa de Luís Henriques e abreviada num título bem-aventurado.
As quatro partes deste livro permitem perceber a intenção de estabelecer um paralelismo entre a jardinagem e o acto de cultivar versos. A intensidade do curso, que remete para um momento de aprendizagem prática, explica-se pela brevidade dos poemas. Essa brevidade assume uma energia questionável, até porque os versos amanhados por Margarida Ferra prescindem de arranjos florais e de outros adereços escusados. Chamar-lhe escassez de recursos não me parece o mais adequado. Prefiro antes falar em «lâmpadas de baixo consumo» (p. 23), uma voluntária economia de recursos (estilísticos) que, na sua evidente depuração, exige ao leitor um papel interventivo. No que respeita ao discurso poético, tornou-se claro nos tempos correntes que toda a simplicidade cifra um sentido que carece de descoberta e exploração. Aparentemente nada há a desbravar na simplicidade, mas todo um mundo se (re)inventa na raiz do poema.
A raiz destes poemas está no corpo, esse mesmo corpo que a autora nos introduz através de uma epígrafe pedida de empréstimo a Marguerite Duras: Não podemos escrever sem a força do corpo. É precisamente essa força que o jardineiro semeia, cultiva e amanha, uma força que não deixa de ser também o resguardo da beleza, quando não a própria acção de resgatar a beleza da sua facilmente despercebida quotidianidade. Neste sentido, a poesia de Margarida Ferra distancia-se dos seus contemporâneos mais elegíacos, pessimistas, “decadentistas”. Sendo claramente uma poesia dos sentidos (somáticos) − arriscaria mesmo falar de uma poesia de índole fenomenológica −, ela não deixa de ser igualmente uma poesia do essencial, uma poesia cuja intervenção está nas escolhas do olhar. Parecendo fotográfica, e por vezes impressionista, esta é uma poesia que «corta o corpo, redu-lo ao essencial, ao pormenor, ao que conta do vivido» (Fernando Guerreiro, in Negativos).
Repare-se como ao longo do livro os vários sentidos do corpo vão estando em evidência. Tão predominante quanto a visão, o olfacto aparece através dos aromas das ervas, do perfume das flores, do «cheiro da menta / no canteiro improvisado» (p. 12), do «cheiro dos restos» (p. 32) no carro do lixo. E há o som dos pés da costureira no pedal, «o som dos passos / livres pela rua que desce» (p. 20), o «eco surdo das horas antigas: / avulsas, longas, gratas, iguais» (p. 36). Também o paladar e o tacto, ainda que de modo mais implícito: «Se fosse hábil de tacto, / rendia-me ao origami» (p. 13). A primeira parte do livro funciona, pois, como uma introdução a este universo poético onde a superficialidade dos gestos quotidianos, domésticos, é fotografada, registada, penetrada por uma ironia ligeira que resgata o encantamento da sua apática distracção.
A segunda parte percorre os espaços domésticos, as quatro divisões de uma casa, mais um corredor e as escadas, lugares de trânsito e conexão. O olhar estendido sobre estes espaços é algo dúbio. Se por um lado indicia um certo acolhimento, por outro lado não deixa de enunciar o desconforto da loiça por lavar, do silêncio fracturado, da exiguidade do espaço: «Nos dias melhores, / a sala era a mesa e quase nada. / Nos outros: o barulho dos animais, / um samba circular, / o óleo na frigideira, / uma faca que separava / páginas novas de livros velhos» (p. 23). Playlist, o poema sequência da parte ulterior, encaixa neste universo um tu amoroso, os filhos, um sujeito poético desdobrando-se num conjunto de imagens muito mais elípticas do que as anteriores. No entanto, nota-se entre as diferentes partes uma ligação, uma mesma identidade, uma mesma sensibilidade.
Os poemas da parte final, intitulada Isto Não São Versos, permitem-nos confirmar que, apesar da brevidade dos poemas, o que aqui está em causa é a intensidade das assimilações. Não se trata de uma poesia dependente da contemplação, nem de uma poesia meramente descritiva, reduzida a observações subjectivas e mais ou menos concretas. Estes poemas denotam um corpo aberto aos lugares habitados, percorridos, sentidos; um corpo que absorve, na sua totalidade, os elementos da experiência, para depois depurá-la com a sensibilidade daquele que cultiva os elementos, já não como um fim em si mesmo, mas como o princípio de alguma coisa tão inerente quão independente do corpo: a poesia. Porque é disso que resulta o poema, da capacidade que o ser escrevente tem de simular os dados do mundo no ser da palavra escrita (um outro corpo).
As quatro partes deste livro permitem perceber a intenção de estabelecer um paralelismo entre a jardinagem e o acto de cultivar versos. A intensidade do curso, que remete para um momento de aprendizagem prática, explica-se pela brevidade dos poemas. Essa brevidade assume uma energia questionável, até porque os versos amanhados por Margarida Ferra prescindem de arranjos florais e de outros adereços escusados. Chamar-lhe escassez de recursos não me parece o mais adequado. Prefiro antes falar em «lâmpadas de baixo consumo» (p. 23), uma voluntária economia de recursos (estilísticos) que, na sua evidente depuração, exige ao leitor um papel interventivo. No que respeita ao discurso poético, tornou-se claro nos tempos correntes que toda a simplicidade cifra um sentido que carece de descoberta e exploração. Aparentemente nada há a desbravar na simplicidade, mas todo um mundo se (re)inventa na raiz do poema.
A raiz destes poemas está no corpo, esse mesmo corpo que a autora nos introduz através de uma epígrafe pedida de empréstimo a Marguerite Duras: Não podemos escrever sem a força do corpo. É precisamente essa força que o jardineiro semeia, cultiva e amanha, uma força que não deixa de ser também o resguardo da beleza, quando não a própria acção de resgatar a beleza da sua facilmente despercebida quotidianidade. Neste sentido, a poesia de Margarida Ferra distancia-se dos seus contemporâneos mais elegíacos, pessimistas, “decadentistas”. Sendo claramente uma poesia dos sentidos (somáticos) − arriscaria mesmo falar de uma poesia de índole fenomenológica −, ela não deixa de ser igualmente uma poesia do essencial, uma poesia cuja intervenção está nas escolhas do olhar. Parecendo fotográfica, e por vezes impressionista, esta é uma poesia que «corta o corpo, redu-lo ao essencial, ao pormenor, ao que conta do vivido» (Fernando Guerreiro, in Negativos).
Repare-se como ao longo do livro os vários sentidos do corpo vão estando em evidência. Tão predominante quanto a visão, o olfacto aparece através dos aromas das ervas, do perfume das flores, do «cheiro da menta / no canteiro improvisado» (p. 12), do «cheiro dos restos» (p. 32) no carro do lixo. E há o som dos pés da costureira no pedal, «o som dos passos / livres pela rua que desce» (p. 20), o «eco surdo das horas antigas: / avulsas, longas, gratas, iguais» (p. 36). Também o paladar e o tacto, ainda que de modo mais implícito: «Se fosse hábil de tacto, / rendia-me ao origami» (p. 13). A primeira parte do livro funciona, pois, como uma introdução a este universo poético onde a superficialidade dos gestos quotidianos, domésticos, é fotografada, registada, penetrada por uma ironia ligeira que resgata o encantamento da sua apática distracção.
A segunda parte percorre os espaços domésticos, as quatro divisões de uma casa, mais um corredor e as escadas, lugares de trânsito e conexão. O olhar estendido sobre estes espaços é algo dúbio. Se por um lado indicia um certo acolhimento, por outro lado não deixa de enunciar o desconforto da loiça por lavar, do silêncio fracturado, da exiguidade do espaço: «Nos dias melhores, / a sala era a mesa e quase nada. / Nos outros: o barulho dos animais, / um samba circular, / o óleo na frigideira, / uma faca que separava / páginas novas de livros velhos» (p. 23). Playlist, o poema sequência da parte ulterior, encaixa neste universo um tu amoroso, os filhos, um sujeito poético desdobrando-se num conjunto de imagens muito mais elípticas do que as anteriores. No entanto, nota-se entre as diferentes partes uma ligação, uma mesma identidade, uma mesma sensibilidade.
Os poemas da parte final, intitulada Isto Não São Versos, permitem-nos confirmar que, apesar da brevidade dos poemas, o que aqui está em causa é a intensidade das assimilações. Não se trata de uma poesia dependente da contemplação, nem de uma poesia meramente descritiva, reduzida a observações subjectivas e mais ou menos concretas. Estes poemas denotam um corpo aberto aos lugares habitados, percorridos, sentidos; um corpo que absorve, na sua totalidade, os elementos da experiência, para depois depurá-la com a sensibilidade daquele que cultiva os elementos, já não como um fim em si mesmo, mas como o princípio de alguma coisa tão inerente quão independente do corpo: a poesia. Porque é disso que resulta o poema, da capacidade que o ser escrevente tem de simular os dados do mundo no ser da palavra escrita (um outro corpo).
Escrito para o Rascunho.
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