domingo, 4 de julho de 2010

NOTICIÁRIO 1957


Praga de lambretas em Santiago.
A Sagan capotou no automóvel.
Terramoto no Irão: 600 vítimas.
O governo retém a inflação.
Os candidatos à presidência
Tentam reconciliar-se com o clero.
Greve de professores e estudantes.
Romaria ao túmulo de Óscar Castro.
Enrique Bello é convidado em Itália.
Rossellini declara que as suecas
São mais frias do que icebergues.
Teorizam-se astros e planetas.
Sua Santidade o Papa Pio XII
Dá a notícia agraciada do ano:
Cristo aparece-lhe várias vezes.

O autor retrata-se com o seu cão.

Surgem os Aguas-Azules.
Grupo Fuego celebra aniversário.
Carlos Chaplin é novamente pai
De família em plena ancianidade.
Exercícios do Corpo de Bombeiros.
Russos lançam objectos à Lua.
O pão e os remédios escasseiam.
Chegam mais automóveis de luxo.
Os estudantes saem à rua
Mas são massacrados como cães.
A polícia mata por matar.

Nicolai disparata contra a Rússia
Sem o menor sentido do ridículo:
São Cupertino voa para trás.

A metade do espírito é matéria.

Roubo com passaporte diplomático:
Na primeira página da Ercilla
As maletas aparecem fotografadas.

Jorge Elliot publica antologia.

Uma pobre pomba mensageira
Choca com os arames da luz:
Os transeuntes tentam salvá-la.

Monumento de mármore causa ira:
«A Mistral deveria estar aí».

Praga de terroristas argentinos.
Kelly afasta vestido de mulher
Esqueleto que move as ancas.

Enrique Lihn define posições.
Perico Müller pactua com o diabo.
Médicos abandonam hospitais.
Aclara-se a incógnita do trigo.

Greve do pessoal do cemitério.
Por fazer uma piada, um polícia
Dá um tiro nos miolos.

A derrota do Chile no Peru:
A equipa chilena joga bem
Mas o azar persegue-a.
Um poeta católico sustenta
Que Jeová devia ser mulher.

Novos abusos com os pobres índios:
Querem desalojá-los das suas terras.
Das últimas terras que lhes restam!
Sendo que são os filhos da terra.

Morte de Benjamín Velasco Reyes.
Já não restam amigos de verdade:
Com Benjamín desaparece o último.

Agora chega o mês dos turistas
Cascas de melões e de melancias
Pensam fazer um templo subterrâneo?

Frei viaja pela Europa.
É recebido pelo rei da Suécia.
Presta declarações à imprensa.
Uma mulher dá à luz num autocarro.
Filho mata pai alcoólico.
Discussão sobre óvnis.
Humilhação em casa de uma tia.
Morre o deus da moda feminina.
Praga de moscas, pulgas e ratazanas.

Profanação da campa do pai.

Exposição na Quinta Normal.
Todos observam no céu, por um tubo,
Astros-aranhas e planetas-moscas.
Choque entre Cartagena e San Antonio.
Soldados contam os cadáveres
Como se fossem pevides de melancia.
Outro ponto a destacar:
As dores de molares do autor,
O desvio do tabique nasal
E o negócio de penas de avestruz.
A velhice e a sua caixa de Pandora.

Mas, de qualquer maneira, ficamos
Com o ano que está por terminar
(Apesar das notas discordantes)
Porque o ano que está por começar
Só pode trazer-nos mais rugas.



Nicanor Parra, de Versos de Salón (1962)
Versão de HMBF

4 comentários:

fernando machado silva disse...

obrigado por todas estas versões e por me dares a conhecer um poeta que desconhecia.

um abraço

hmbf disse...

Obrigado eu, pelo comentário e pela visita.

fernando machado silva disse...

qual quê, visito todos os dias; tu é que não me vês. também gostei dos textos sobre a náusea, o tédio e o sem-sentido - talvez derivado da leitura do cioran - que andaste a escrever; mas embora sendo, à minha maneira, um pessimista, repego a moral estóica e procuro sempre apanhar o que acontece no acontecimento, contra-efectuá-lo, virar a mesa e de novo pô-la para o que acontecer, ou seja, a vida, como tu disseste, não faz sentido (mesmo com e fazendo arte), mas agarro-a com tudo o que possa (por enquanto).

abraço

hmbf disse...

O motivo para os textos da série "Um Homem com Frio", que 'inda agora começou, é o problema da inutilidade. Cioran foi só um pretexto para pensar esse problema. Mais uma vez, obrigado.