quarta-feira, 14 de julho de 2010

HANG 'EM HIGH


Ontem, após mais um dia de trabalho absolutamente ridículo (anda um tipo a estudar para passar 8 horas a reetiquetar livros), cheguei a casa e, no silêncio solitário da mansão, pus-me a folhear um livrinho intitulado Curious Moments – Archive of the Century / Das Fotoarchiv. O mundo está abarrotado de momentos curiosos, e é profundamente entristecedor ver tanta gente distraída desses acidentes magníficos que dão beleza ao absurdo da existência. Como sempre fugi de vidinhas desenhadas a régua e esquadro, lá me embalei com as aberrações do século passado até o sono começar a ameaçar-me a noite. Mulheres com barba, faquires, equilibristas morais e amorais, gigantes, anões, personalidades megalómanas, sexo, crime, estórias que nos fazem olhar para o mundo como a mais cómica das tragédias.

Soterrado debaixo de toneladas de sono, apaguei as luzes e fechei os olhos. Ainda não tinham passado 15 minutos e já andava de pé novamente. Não conseguia adormecer, algo que vai fazendo parte da rotina diária. Meti um pau de incenso a queimar no quarto, outro na sala e ainda outro na cozinha. Apanhei uma moca de incenso que nem vos conto, mas mesmo assim não conseguia adormecer. Que se lixe, pensei. Quando morrer, hei-de dormir uma vida eterna. Penso isto quase todos os dias. Liguei a televisão e revi o Hang ‘Em High, um western de Ted Post, dos idos de 1968, com Clint Eastwood no papel principal. Dennis Hopper também aparece muito fugazmente. Adormeci a ver o filme, que por acaso ficou encravado ao minuto 75. Reparei nisso hoje, quando acordei no sofá da sala cheio de dores nas costas.

Acordei como o Sheriff Ray Calhoun, de Red Creek, um dia mais velho, mas não mais sábio. Como o título do filme faz prever, há por ali demasiados enforcamentos. Oklahoma ainda não era um Estado. Davam-se os primeiros passos nesse sentido, ou seja, tentava-se assegurar um regime à base de leis que os juízes procuravam aplicar protegidos pelos homens das estrelas ao peito. À injustiça da justiça pelas próprias mãos respondia-se com a justiça injusta dos tribunais. Magotes de gente reunida assista ao popular circo dos enforcamentos. Vendiam-se cervejas frescas ao mesmo tempo que se cantavam temas religiosos e orava-se em nome das almas dos assassinos. Hoje é tudo muito mais recatado. O velho novo Oeste aprendeu a não fazer do “linchamento autorizado” um espectáculo. As mulheres que são apedrejadas até à morte em alguns regimes islâmicos inspiram muito mais compaixão do que os condenados à cadeira letal nos Estados do velho novo Oeste que ainda praticam a pena capital.

Evoluímos qualquer coisa, é certo, mas não evoluímos assim tanto quanto o silêncio estratégico das sociedades ocidentais fazem prever. Os Curious Moments do séc. XXI hão-de um dia ser compilados, em livro ou digitalmente. Daqui a cem anos, muito possivelmente, teremos um tonto como eu a divertir-se com as nossas aberrações actuais enquanto queima pelas divisões da casa vários paus de incenso e reza a todos os santinhos para que o sono lhe seja generoso. Não sei o que pensarão vossas excelências sobre este assunto, mas ao rever o Marshal Jed Cooper em acção senti como que uma corda ao pescoço. Desagrada-me a memória selectiva dos meus contemporâneos, desagrada-me o moralismo faccioso com que apontam o dedo aos outros olhando de soslaio os seus próprios problemas.

Bem sei que vivemos hoje num mundo globalizado, uma aldeia global com tribos heterogéneas a fazerem por si como sabem e podem. Resistir à homogeneização cultural tem os seus custos. Um deles é virmos a ser alvo de um etnocentrismo cultural, uma mania da superioridade, que, lá está, é tão ligeira a apontar defeitos externos quanto a dissimular vícios caseiros. A lapidação é um facto hediondo, desumano, monstruoso. Óbvio. Resulta desse processo que ao longo dos tempos nos transformou em estranhas criaturas, por ter pretendido que fôssemos algo mais do que criaturas individuais, únicas, livres. É como aqueles linchamentos públicos que o Hang ‘Em High recorda, ou como a tortura medieval reavivada em Abu Ghraib. Exemplos não faltam. Manter uma vida inteira milhões de pessoas penduradas pelo pescoço, com o nó da corda capitalista apertando-lhes o gasganete até ao suicídio ou, na melhor das hipóteses, à loucura, também não é muito agradável. Enfim, vivemos num mundo complexo, abarrotado de momentos curiosos, tantos que é profundamente entristecedor ver tanta gente distraída desses acidentes magníficos que dão beleza ao absurdo da existência.

4 comentários:

CCF disse...

Ainda assim, horror por horror, este tem destinatários especiais: as mulheres.
~CC~

hmbf disse...

Em 2009 foram assassinadas em Portugal, na sequência de crimes classificados como violência doméstica, 29 mulheres, ao passo que outras 28 foram alvo de tentativas de homicídio.

Notícia do Público, a 14.07.2010


O Inferno é aqui, agora, neste momento.

CCF disse...

É também aqui, como lá. Mas aqui o que é que as condena? Lá é a própria justiça, que como não se separa do Estado, e esse não se separa da religião, é uma máquina horrível de poder, de subjugação.
Aqui não vivemos no mais maravilhoso dos mundos, a máquina é mais subtil(terrível a forma como as forças policiais continuam a desprezar as vitímas), mas apesar de ser difícil, há escapatória para essas mulheres, podem denunciar e pedir protecção.
~CC~

hmbf disse...

Tanto não há que foram assassinadas. E agora até parece que é moda entre casais de adolescentes os rapazes agredirem as raparigas. Descuramos os nossos problemas e é no que dá. Lá é um horror às claras, cá é um horror às escuras. Não deixa de ser um horror em ambos os casos.