segunda-feira, 5 de julho de 2010

THE PASSPORT

Confiei ao tradutor Martin Chalmers a minha iniciação ao universo de Herta Müller, vencedora do Prémio Nobel da Literatura em 2009. Não sei se fiz bem ou se fiz mal, mas sei que The Passport (título inglês) soa-me melhor do que Der Mensch ist ein grosser Fasan auf der Welt (título original deste romance publicado em 1986). Fui espreitar e fiquei a saber que a tradução literal do título seria qualquer coisa como «A man is nothing but a pheasant in the world», provérbio em duas ocasiões pronunciado no decorrer da narrativa (p. 9 e p. 70). Herta Müller escreve como quem inventaria gestos, tem um olhar de falcão que capta os mais ínfimos pormenores, deixa-se arrastar pelas estações e descreve-nos a vida no campo com invulgar clareza poética. As frases são curtas, os capítulos são breves e configuram historietas quotidianas cujo encadeamento lógico é sustentado por uma mesma situação englobante.

Neste caso, o ponto central é a vontade/necessidade de emigrar. Windisch, o moleiro de uma aldeia aperreada pela ditadura de Nicolae Ceausescu e ensombrada pelas memórias da Segunda Grande Guerra, será o centro das atenções. Apesar do estilo narrativo me parecer bastante linear, cada "capítulo" funciona como uma peça de um puzzle. Têm o seu tema singular, condensado no título, sem deixarem de ter um vínculo muito objectivo ao assunto geral. Assim, a vida naquela aldeia é-nos relatada a partir de episódios aparentemente banais. O guarda-nocturno, o carpinteiro, o peleiro, o padre, são personagens de uma trama que vai sendo tecida à passagem das estações, acompanhada pelo som da máquina de costura, da bicicleta pedalada sobre a erva, do tiquetaquear dos relógios nas paredes, do aparecimento das dálias e do voo de uma coruja que parece um gato com asas.

Galinhas, porcos, cabras e um galo cego, acácias, hidrângeas, macieiras e a neve, são outras testemunhas dos sonhos e dos pesadelos que condicionam a vida da povoação. Mas este ambiente aparentemente idílico encerra os seus traumas, os seus segredos, as suas angústias e os seus fantasmas. Windisch procura evitar que a filha Amalie tenha o mesmo destino da mulher, Katharina, obrigada a prostituir-se durante os cinco anos passados num acampamento militar na Rússia: «“In Russia she spread her legs for a piece of bread,” the people in the village said after the war. / At the time Windisch thought: “She is beautiful, and hunger hurts.”» (p. 39) A necessidade de um passaporte para emigrar é colocada ao nível da mais básica necessidade de sobrevivência. A fome não transcende o desejo de liberdade.

O que agora se pretende preservar é uma réstia de beleza levada pela corrupção dos homens. E o passaporte que Windisch deseja é um passaporte para um lugar de esperança, um lugar que o liberte da vida desassossegada e corrompida pelos interesses e pela hipocrisia da política: «In the warm, dark air of the room, Windisch dreams that the sky opens up. The clouds fly away out of the village. A white cock flies through the empty sky. It strikes its head against a bare poplar standing in the meadow. It can’t see. It’s blind. Windisch stands at the edge of a sunflower field. He calls out: “The bird is blind.” The echo of his voice returns as his wife’s voice. Windisch goes deep into the sunflower field and shouts: “I’m not looking for you, because I know you aren’t here.”» (p. 58)

Ali só havia o vazio deixado pela ausência do belo, os carris das linhas do comboio gritando de desespero por uma partida, um vento escondido no nevoeiro, na densidade das nuvens carregadas de pó. E do lado daqueles que partiram, nostalgia (homesickness). The Passport interroga-nos, enfim, sobre os lugares de pertença, sobre as algemas que nos afastam da felicidade e nos transportam para um sítio onde a esperança se torna tão ambígua quanto a inconstância das estações. De certa forma, diz-nos que a beleza está na possibilidade de olhar o mundo na diversidade de pormenores que formam as circunstâncias. Por outro lado, parece dizer-nos que essa beleza já não está em lugar algum. E no fim, ficamos como o moleiro: «Windisch sees that many rails run into one another. He sees other trains on the confusion of rails» (p. 89).

2 comentários:

redonda disse...

Eu ainda consegui encontrar o livro em português "O Homem é um grande faisão sobre a terra" penso que da Cotovia.

hmbf disse...

Olha, e eu nem me lembrei dessa edição. é da Cotovia, sim.