Neste caso, o ponto central é a vontade/necessidade de emigrar. Windisch, o moleiro de uma aldeia aperreada pela ditadura de Nicolae Ceausescu e ensombrada pelas memórias da Segunda Grande Guerra, será o centro das atenções. Apesar do estilo narrativo me parecer bastante linear, cada "capítulo" funciona como uma peça de um puzzle. Têm o seu tema singular, condensado no título, sem deixarem de ter um vínculo muito objectivo ao assunto geral. Assim, a vida naquela aldeia é-nos relatada a partir de episódios aparentemente banais. O guarda-nocturno, o carpinteiro, o peleiro, o padre, são personagens de uma trama que vai sendo tecida à passagem das estações, acompanhada pelo som da máquina de costura, da bicicleta pedalada sobre a erva, do tiquetaquear dos relógios nas paredes, do aparecimento das dálias e do voo de uma coruja que parece um gato com asas.
Galinhas, porcos, cabras e um galo cego, acácias, hidrângeas, macieiras e a neve, são outras testemunhas dos sonhos e dos pesadelos que condicionam a vida da povoação. Mas este ambiente aparentemente idílico encerra os seus traumas, os seus segredos, as suas angústias e os seus fantasmas. Windisch procura evitar que a filha Amalie tenha o mesmo destino da mulher, Katharina, obrigada a prostituir-se durante os cinco anos passados num acampamento militar na Rússia: «“In Russia she spread her legs for a piece of bread,” the people in the village said after the war. / At the time Windisch thought: “She is beautiful, and hunger hurts.”» (p. 39) A necessidade de um passaporte para emigrar é colocada ao nível da mais básica necessidade de sobrevivência. A fome não transcende o desejo de liberdade.
O que agora se pretende preservar é uma réstia de beleza levada pela corrupção dos homens. E o passaporte que Windisch deseja é um passaporte para um lugar de esperança, um lugar que o liberte da vida desassossegada e corrompida pelos interesses e pela hipocrisia da política: «In the warm, dark air of the room, Windisch dreams that the sky opens up. The clouds fly away out of the village. A white cock flies through the empty sky. It strikes its head against a bare poplar standing in the meadow. It can’t see. It’s blind. Windisch stands at the edge of a sunflower field. He calls out: “The bird is blind.” The echo of his voice returns as his wife’s voice. Windisch goes deep into the sunflower field and shouts: “I’m not looking for you, because I know you aren’t here.”» (p. 58)
Ali só havia o vazio deixado pela ausência do belo, os carris das linhas do comboio gritando de desespero por uma partida, um vento escondido no nevoeiro, na densidade das nuvens carregadas de pó. E do lado daqueles que partiram, nostalgia (homesickness). The Passport interroga-nos, enfim, sobre os lugares de pertença, sobre as algemas que nos afastam da felicidade e nos transportam para um sítio onde a esperança se torna tão ambígua quanto a inconstância das estações. De certa forma, diz-nos que a beleza está na possibilidade de olhar o mundo na diversidade de pormenores que formam as circunstâncias. Por outro lado, parece dizer-nos que essa beleza já não está em lugar algum. E no fim, ficamos como o moleiro: «Windisch sees that many rails run into one another. He sees other trains on the confusion of rails» (p. 89).
2 comentários:
Eu ainda consegui encontrar o livro em português "O Homem é um grande faisão sobre a terra" penso que da Cotovia.
Olha, e eu nem me lembrei dessa edição. é da Cotovia, sim.
Enviar um comentário