domingo, 29 de agosto de 2010

A AMANTE HOLANDESA

J. Rentes de Carvalho (n. 1930) tem sido frequentemente apontado como um escritor português que vende muito na Holanda, para onde foi viver em 1956, mas poucos leitores conhecem em Portugal. Eu fazia parte dos poucos. Ainda que nunca seja tarde para descobrir um autor, aqui me penitencio por ter chegado tão tardiamente a uma obra que começou a ser publicada na segunda metade da década de 1960. Já lhe tinha lido algumas prosas na extinta revista Periférica, mas fico a dever o progresso para os livros à inquestionável qualidade dos posts que Rentes de Carvalho tem vindo a publicar no weblog Tempo Contado. A Quetzal, que em boa hora resolveu reeditar alguns dos títulos do escritor, facilitou-me a tarefa. Peguei naquele que estava mais à mão, este A Amante Holandesa (Quetzal, Julho de 2010), cuja primeira edição data de 2000, e procurei redimir-me de um mal que, felizmente, tem cura. Outros há que a não têm. Quando damos por ele, já o mal nos levou vontade e disponibilidade para remediar o que quer que seja. Lá iremos.

Dois dados a fixar antes de entrarmos pelo romance propriamente dito. Primeiro, estamos a falar de um livro escrito em idade adulta, aquilo a que alguns poderiam chamar “obra de maturidade”, houvesse idade para uma obra, ou, o que, a meu ver, faz mais sentido, uma obra onde a idade pesa sobre o que está escrito. Segundo dado importante: trata-se de uma história ocorrida, sobretudo, na província transmontana, com a qual Rentes de Carvalho mantém declaradas relações afectivas. Estes dados são importantes porque nos permitem presumir alguns elos entre o narrado e as vivências concretas do autor, ou seja, nem o cenário nem a situação existencial do narrador serão alheias àquele que as escreve. Numa época especialmente contaminada por realismos fantásticos e fantasiosas realidades, é bom encontrar um livro onde a principal preocupação parece ser a de contar bem uma história, sem abstraccionismos que pecam, tantas vezes, por se revelarem hiperbólicos na imaginação e imbecis na presunção de um estilo.

Além do mais, trata-se de um romance que escapa aos clichés urbano-deprimentes de tanta tralha que vai sendo publicada sem critérios minimamente inteligíveis. Na “arena”, temos dois amigos de infância que se reencontram numa dessas «aldeias tão longínquas que são apenas manchas brancas na paisagem» (p. 10). Um deles, o narrador, tem 57 anos e é professor em Bragança. O outro, quis o destino que ficasse pastor após um período de emigração pela Holanda. Pois que caberá ao segundo pôr o primeiro ao corrente das suas aventuras pelas terras baixas, onde deixou uma filha e uma inacreditável, de tão bela, amante. Porque o destino prega partidas, acaba o primeiro a cruzar-se com a filha holandesa do segundo. Deixo os detalhes à mercê dos potenciais leitores. Numa escrita escorreita e ágil, onde tudo parece ligeiro sem que nada seja superficial, o que nos oferece A Amante Holandesa é a história de um indivíduo em estado de crise.

Se fôssemos adeptos dos estádios de Erikson, diríamos que aquele professor de 57 anos antecipou o desespero da 8.ª idade. Está consciente de que já viveu o que tinha a viver, renega a vida sem poder recomeçá-la: «se sei o que não tive, não sei o que perdi» (p. 21); para logo acrescentar: «Futuro? O que ainda me resta será provavelmente feito de trivialidade, rotina, medo crescente. Mais também não espero» (p. 29). Não é um fracassado, mas as suas reflexões denotam um indivíduo resignado e submisso. Alimenta um casamento pautado pelo conformismo, uma vida desviada da regra apenas em contexto de mórbida, solitária e frouxa intimidade. Mas nem nesse espaço particular logra ele encontrar as aventuras que supõe e vislumbra nas histórias do amigo pastor. Interroga-se: «Que fiz eu para merecer este destino murcho, esta vida tépida, monótona, previsível? Sem fogo de paixão, sem drama, os meus dias arrastam-se na expectativa medíocre de que talvez amanhã aconteça alguma coisa. Amanhã. Sempre amanhã. E ao mesmo tempo agrilhoado à certeza de que nada acontecerá, porque me envolvo em seguranças, ponho travões, não dou passo que não seja calculado» (p. 35).

Não sendo unicamente sobre a velhice, este é um romance onde a velhice aparece retratada nas múltiplas dimensões da vida humana: psicológica, afectiva, social, etc. Mas esta também podia ser, assim o quiséssemos, uma parábola sobre uma nação acobardada, uma nação que é a nossa. Repare-se que à ousadia daqueles que partiram, J. Rentes de Carvalho contrapõe o amorfismo daqueles que foram ficando. O gerúndio é pertinente, pois mais que ficarem, eles foram apenas ficando. Foram ficando não por ser essa a sua decisão, mas por ter sido esse o resultado da inacção. Foram ficando medianamente conformados com o destino que lhes calhou, refugiando-se nos recantos onde a memória prevalece, consumidos pela inveja e por desejos recalcados. Que melhor retrato podemos esperar dos portugueses? Mais grave quando a idade pouco ensina: batendo-nos a aventura à porta, refreamos os sonhos, encolhemos as paixões, amedrontamos a vontade. Não é necessariamente cobardia, é o peso das consequências impedindo-nos de tomar nas próprias mãos a vida dos sonhos. Feito o balanço, só podemos concluir: «Sou a criança que queria manter a ilusão e, ao mesmo tempo, o velho ciente de que tudo tem preço, tudo tem fim» (p. 225). Vamos ficando.

Escrito para o Rascunho.

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