quarta-feira, 11 de agosto de 2010

CONVERSA




A ausência da minha sobrinha trouxe algumas dificuldades: a Matilde ficou sem companhia para banhos de mar intermináveis e a Beatriz com menos uma cabeça para puxar cabelos. Ao levantar do pano para o segundo acto, continuo as peregrinações ao Três Arquinhos. Anteontem, encontrei-me por lá com a Sara. O Rodrigo tinha ficado em casa a alongar o sono, ela andava à procura de ingredientes para as saladas. À noite, juntámo-nos todos na Esteveira, bebemos cerveja, vinho, conversámos. Cada vez mais desabituado destes ritos, tal a misantropia a que me dediquei nos últimos tempos, dou comigo a reencontrar-me intimamente com o prazer da conversa que Stevenson tão bem descreveu; dessa conversa de objecto volátil mas sensível, o simples prazer de dar à língua sem custo nem abono, conversar por conversar, articulando palavras ao ritmo das ideias, contando histórias, repartindo projectos, pequenas confissões.

Acompanhados pela música que o vento trazia, os grilos, os gafanhotos e as traças juntaram-se a nós. São olhados de soslaio, com alguma desconfiança, embora não me seja difícil imaginar que cirandam de um modo cadenciado, como que fazendo das nossas palavras a valsa dos seus voos. Cada palavra que vibra nas cordas vocais e salta para o ar ocupado pelos insectos traz-me à boca um paladar que andava adormecido, o paladar da cavaqueira sem glosa, onde os intervenientes se ocupam daquilo que verdadeiramente importa: ouvir o que cada um tem a dizer sem o prejuízo roedor das interpretações torcidas, tendenciosas, pretensiosas e enfatuadas, ouvir sem pretender ser jocoso, espiritual, artificialmente gracioso. Conversar sem os ouvidos de uma sala emparedada, num pátio a céu aberto. Observados lá do alto por um infinito mar de estrelas.

Dou comigo a ponderar as dificuldades que sempre senti em conversar com os da minha geração. Por vezes, sinto-me desenquadrado da paisagem competitiva, mais exibicionista do que aquilo que ambiciono para os meus dias; noutras ocasiões, noto nos argumentos uma artificialidade que transforma os meus pares em clones dos pais, mas sem a experiência de vida destes. Poucas situações me são mais desagradáveis do que tentar alimentar um diálogo com um espírito arcaico num corpo imaturo. Não é de hoje, este desfasamento. Quando era adolescente, ficava a aturar os velhos nas tabernas enquanto os meus amigos engatavam miúdas nas discotecas. Sinto-me frequentemente mais integrado entre gente com quem sinto ter algo a aprender. Mesmo admitindo as excepções, que não asseguram saber na idade nem superficialidade na juventude, comigo tem sido assim.

É verdade que me vou cruzando com gente velha cuja experiência de vida se resume às aventuras que nunca viveram. Passam os dias a remorder a vida dos outros, tão mal tratados que foram pelas próprias vidas. E tenho conhecido malta nova a quem vale a pena topar os gestos, os tiques, os sonhos e as vontades. Ora, se o encontro com a Sara e o Rodrigo tinha a previsibilidade de alguns e-mails previamente trocados, ter avistado o Miguel e a Catarina a baixarem à praia da Arrifana foi completamente inesperado. Vinham extasiados com os dotes culinários de um Bilal (como o tipo dos comics, assegura o Miguel) com cozinha montada num restaurante em Monte Clérigo. O entusiasmo das descrições foi convincente, pelo que tenciono passar por lá antes de rumar a Norte. A Catarina juntou-se às miúdas fantasiando castelos na areia, deixando o Miguel dar largas a uma desconhecida personalidade de Lobo do Mar.

Pena que as safias e o robalo oferecidos pelo Luís não tenham sido argumentos suficientemente fortes para os fazer pernoitar uma noite na Esteveira. À chegada, outros argumentos haveria. O Vivaldo deixou de brinde, pendurada na porta, uma saca cheia de percebes, caranguejos, lapas e mexilhão. Entre os crustáceos, encontrei também uma concha de Djuna Barnes. Foi tudo ao lume numa panela com água e sal. Preparei duas caipirinhas e depois abri a Fome para degustar mais umas páginas:

«Fiquei deitado um bocado com os olhos fixos no escuro, naquela espessa massa escura que não tinha fundo nem cujas dimensões era possível apreender. O meu entendimento não conseguia entender. Era uma escuridão sem igual e eu sentia a sua presença exercer pressão sobre mim. Fechei os olhos, comecei a cantarolar meio alto só para mim e atirei-me uma vez e outra para cima da tarimba para me distrair, mas não me valeu de nada. A escuridão apoderou-se dos meus pensamentos e não me deixou em paz um só instante. Imagine-se que eu próprio me dissolvia na escuridão, que me fundia com ela!» (Knut Hamsun, in Fome, trad. Liliete Martins, Cavalo de Ferro, Outubro de 2008, pp. 97-97)

2 comentários:

fallorca disse...

Tinhoso! Só sabes postar fotos fomográficas...

hmbf disse...

:-)

Hoje tivemos de entrada uns cogumelos gratinados com beterraba. Seguiu-se um belo prato de polvo na grelha com batatas a murro. A sobremesa foi gelado de chocolate. A acompanhar o repasto, sangria de frutos silvestres. Saúde,

:-)))