domingo, 8 de agosto de 2010

AS VACAS




Não há no tempo o vagar dos velhos que passam, muito esporadicamente, enquanto finalizo a leitura d’A Amante Holandesa no quintal da Esteveira. Passa um de bicicleta, pedala como que em câmara lenta, com as mangas arregaçadas até aos cotovelos, as calças estrategicamente adelgaçadas com molas. Ninguém gosta de bainhas manchadas pelo óleo das correntes. Se falássemos metaforicamente, diríamos que na praia, antes de se aventurarem no sal das ondas, os banhistas oleiam as bainhas. Elas espalham pelos ombros deles protectores perfumados, eles espalham pelas costas delas bronzeadores aromáticos. Observo-os discretamente, enquanto pauso a leitura de uma antologia de contos. Sholom Aleichem, russo, «the most popular of all Yiddish writers», desvia-me a atenção dos corpos bronzeados, tatuados, tonificados. A verdade é que os olho e não consigo evitar o esmorecimento. Estou flácido, pesado, desgastado, crescem-me pêlos brancos nas barbas, sinto dores no corpo todo, meia corrida atrás de uma bola na praia leva-me ao tapete, à areia.

Apesar de tudo, as mulheres logram desculpas mais plausíveis para a indesmentível ditadura do tempo. Vêem umas mamas rijinhas e põem-se logo a falar de silicone, um cu firme, liso, sem ponta de celulite, só pode resultar de censuráveis ociosidades: não têm mais que fazer, passam o tempo todo nos ginásios. Recrimino-me, penso que não devia ter deixado de praticar desporto, digo a mim próprio que não devia fumar tanto, que talvez devesse beber menos, mas depois arrumo todas as considerações num cantinho muito obscuro da vontade e acendo mais um cigarro, leio um poema do Rui Pires Cabral e pergunto-me: serão aqueles belos corpos mais felizes do que a velha que agora passa, metida nos seus botins de borracha, curvada, com uma bata negra a protegê-la do calor e um chapéu de palha a fazer-lhe sombra sobre o nariz? Não estará a todos reservado o mesmo destino curvado? De certo modo, andamos todos com molas a adelgaçarem as bocas das fazendas. E eu mais que os outros.

Dir-me-ão que estou louco, julgarão untuosas, talvez antiquadas, as minhas confessadas reflexões, mas a verdade é que nos parcos 35 anos que o corpo me carrega antevejo já as dores de um indesejável enfraquecimento físico. Por isso, pouco mais me resta do que sentar-me a olhar, a observar, a beber, a fumar, a ler, a desenhar. Podia fazer algo mais, é certo, mas faltam-me incentivos pelo menos tão fortes quanto o prazer de ficar por ali simplesmente a… olhar, a observar, a beber, a fumar, a ler, a desenhar. Desde que cheguei que ando para rabiscar uma vaca no pastoreio. Ainda não consegui. Também não posso dizer que me tenha esforçado muito. Na verdade, não me esforcei minimamente. Sempre que passo por elas, algo mais forte me chama. O bagaço no Três Arquinhos e, nos últimos dias, a cativante amante holandesa de J. Rentes de Carvalho. Para já, são essas e pouco mais as minhas preocupações: encontrar locais protegidos dos trogloditas que o Festival Sudoeste atrai por esta altura, arranjar resposta para as desafiantes interrogações da Beatriz.

− Onde é que o dono da praia guarda a mangueira para encher o mar?

Porque começo a fugir de um sítio quando pressinto dificuldades de estacionamento, sigo mais para sul. Levo debaixo do braço A Amante Holandesa. Estendemos a toalha na areia, entreolhamo-nos, vamos à água, sorrimos, ficamos. Livro tramado, daqueles que nos agarram sem nos deixarem defesa. Para quem, como eu, tem uma relação tão intermitente com a ficção, pior ainda com a ficção portuguesa, sempre repleta de personagens hiperbólicas e nauseantes de excessiva cultura literária, é um gozo folhear páginas assim, reveladoras de uma maturidade de pensamento atenta aos pormenores da vida comum. Remorsos, inveja, cinismo, melancolia em doses existencialmente suportáveis, num registo convincente porque bem medido. Nada de exageros, tudo provável, isto é, tudo plausível, verosímil, identificável. E mais não é preciso do que uma cidade como Bragança e uma aldeia, um pastor, um professor, gente comum a quem é possível descobrir sentimentos, histórias de vida, segredos e paradoxos literariamente entusiasmantes. Metam os olhos nesta escrita: «Que fiz eu para merecer este destino murcho, esta vida tépida, monótona, previsível? Sem fogo de paixão, sem drama, os meus dias arrastam-se na expectativa medíocre de que talvez amanhã aconteça alguma coisa. Amanhã. Sempre amanhã» (pp. 34-35). E mais não digo, fica para amanhã…

…que hoje esteve mau tempo, o vendaval nocturno trouxe uma densa neblina. Ainda assim, não afastou o calor. Aproveitámos a meteorologia instável, assim como o regresso da minha irmã, ainda a cheirar a aborígenes australianos, para descer até Lagos. Os meus pais vieram de pendura. Vejo-os cada vez mais raramente e nunca os tinha apanhado nestes modos. Conversamos, recordamos, comovemo-nos. Os miúdos estão crescidos, os crescidos estão mais velhos, os velhos estão reformados. Juntamos duas mesas numa cervejaria, mandamos vir percebes, sapateiras, ostras, camarão. Sentada a uma ponta da mesa, a minha mãe queixa-se da barriga inchada. Depois da refeição, afasta-se para soltar gases. Se o fez pelo ribombar da maleita, não valia a pena dar-se ao incómodo. Toda a gente ouviu. O meu pai queixa-se, diz que não consegue dormir tal a frequência da aflição. Eu e a minha irmã rimo-nos cumplicemente.

À mesa, histórias da Austrália. O meu pai queixa-se que a imperial nunca mais vem. A minha irmã conta que foi ver os primos, estão bem, ficaram comovidíssimos. A minha mãe queixa-se que o pão torrado nunca mais vem. Um dos primos cursou teologia, agora faz fortuna a vender frango com piripiri ou coisa que o valha. O meu pai queixa-se que os percebes nunca mais vêm. Que a Austrália é um país enorme, organizado, não se vê polícia nas ruas, só câmaras de vigilância, são pontualíssimos. O meu pai queixa-se dos empregados de mesa que não lhe trazem a porra da imperial. Porra é um exagero meu. A minha mãe diz que o primo teólogo, quando foi o “zunami”, andou por lá a prestar ajuda aos mortos. E o pão torrado, já pediram pão torrado? A minha irmã diz que os aborígenes estão tão protegidos pelo governo que nem se vêem. Eu penso de mim para mim que devem ser como as ostras. Os únicos aborígenes que se vêem, pretos pretos de cabelo liso, os mais feios que há, andam bêbedos nos tugúrios da urbe. É tudo caríssimo, mas bonito, elegante, gente bem-educada e simples, sem ponta de ostentação. Entretanto, chegaram os camarões, o pão torrado, as sapateiras, os percebes, as ostras, o vinho branco. Só não chegou a porra da imperial. Tenho um azar tramado, lamenta o velho, comigo é sempre assim, sou o primeiro a pedir e o último a ser servido.

7 comentários:

Anónimo disse...

o rentes de carvalho é o maior!

no dia a seguir a aviares-me "a amante holandesa", - com uma directa em cima por causa da leitura - fui buscar o "ernestina".
aqueles livros parecem aspiradores, pá. sem dar por elas estava a galgar os montes transmontanos e a olhar para o porto desde gaia...

enfim... boas ferias.

filipe

hmbf disse...

:-)

obrigado

Cristina Gomes da Silva disse...

Parece-me um relato de uma belas e descansadas férias :-)

Anónimo disse...

Atira-te a elas, boi. Esquece, gostas é de mamar no tição.

maria disse...

não sei, não. Se a tua mãe souber disto, ainda tens bom corpo para aguentar umas lambadas. ;)

mas a verdade é que não consegues disfarçar a ternura disto tudo.

continuação de boas férias.

hmbf disse...

Ternura é uma boa palavra, MC.

Nem mais, Cristina.


P.S.: e um pouco de ficção também faz bem à alma ;-)

Luis Eme disse...

belo olhar e bela prosa, sem imperial...