segunda-feira, 2 de agosto de 2010

«OIÇO OS GUIZOS»

Saímos tarde de casa. Pelo menos, com um ano de atraso. Fosse o mundo perfeito, nunca teríamos de fazer da Esteveira a excepção à regra. Não é que viver em Caldas da Rainha seja mau. Longe disso. Dou-me lindamente com a faiança local. A questão é que, passado um ano, regresso aqui com a mesma sensação de sempre: passou um ano para aqui poder chegar. Ando nisto há pelo menos 14 anos, mais dois que os da sobrinha que este ano nos acompanha durante a primeira semana de férias. A mãe, minha irmã, foi para a Austrália caçar crocodilos. Que a sorte a acompanhe.
A Ana fez o favor de vir a conduzir, o que me deixou mãos livres para Raso Como o Chão, de Álvaro Lapa. A distracção fez com que deixássemos a auto-estrada uns metros mais abaixo do que era suposto. O mal veio por bem. Parámos em Grândola, para esticar as pernas e beber café. As miúdas deram asas aos cabelos no balancé do parque. Enquanto voavam, eu sublinhava a página 103:

O PASSEIO

A matéria negra arde entre escolhos. Tudo avança lentamente, posto que avança. Vai indo entre rodas, rumo ao húmido. É o passeio. Rumo ao mais fresco. É o Verão. Para lá dos cães, além da pedra com o talho da cabeça, nos pneus que escorregam ainda amiúde (o pó solto; a excitação) verás o rio. Em baixo, lago de lume, ardido ao ar, entre escolhos. Degraus o puxam, degraus o trazem. Pula no ar, desfaz-te em rio. É o passeio. Vitorioso passeio fora do dado, quase desconhecido, apenas visto. A aventura sem as palavras, perdida em fôlegos, em contracenagens, em infracções. Ida por dentro, rasgada a terra. Volta por fora, pelo céu da estrada. Rudimentos do inesquecível, permanência do revelado: a toponímia de cada metro ciceroneado, por quem o sabe. Dentro é de um, por fora é o outro, os construtores da tarde. Os que asseguram. E asseveram. E assim procedem. Os (dois) guias eventuais da descoberta.

Álvaro Lapa, in Raso como o chão, Estampa, Agosto de 1977.

Há 33 anos escrevia-se assim, hoje jamais se publicariam palavras destas. Infelizmente. Curiosamente, a parte final do livro coincidiu no título – Os Ciganos e as suas Propriedades – com uma charada da Matilde: um cigano é uma pessoa grande, um ciganito é uma pessoa pequena. À pergunta falta muito para chegarmos?, a Beatriz responde: chegamos de aqui a muito longe. As crianças animam a viagem, tão longa que já tenho saudades, comentam com risos, e sob a música do Jamiroquai não há tristeza que medre.
A receber-nos, uma chave debaixo do tapete. Não valia a pena darem-se ao trabalho, a porta estava aberta. Esta despreocupação como que marca o começo das férias, é uma espécie de portal para uma segunda vida, para um ansiado processo de reconstrução moral. A Beatriz senta-se no pátio, inspira fundo e diz-me: vou pôr o meu ar puro todo na boca, põe o teu também. Sigo-lhe o conselho, mas logo de seguida acendo um cigarro. Concentro-me nas melopeias do quintal, refaço-me pelos ouvidos: grilos, cigarras, rãs e rolas. Ao longe, as vacas. Um burro lento. Um cão, de quando em vez. E já sei, um galo pela matina. Um galo acertado nas horas. Pássaros cujo nome desconheço, uma brisa ligeira nos canaviais. É preciso comer. «A cabeça pesa-me no estômago vazio». Vamos a Odeceixe matar o bicho, tratamos do lume amanhã.

2 comentários:

manuel a. domingos disse...

ai ai
as saudades que eu tenho
do SW alentejano

abraço

hmbf disse...

outro para ti

já vi que a concha chegou em boas condições