sexta-feira, 15 de outubro de 2010

ÁGAPE, AGONIA

O grau de exigência de uma obra literária é relativo à predisposição do leitor para se abrir à linguagem dessa obra. Um texto breve como este Ágape, Agonia, originalmente publicado em 2002, e agora virtuosamente mudado para português pelo poeta José Miguel Silva, obriga-nos, pela sua densidade filosófica, pela concentração de múltiplas referências e informações, pelas suas próprias características estruturais, a dois tipos de leitura: uma mais cuidadosa e atenta aos pormenores, outra menos comprometida com o conteúdo e embalada pelo ritmo vertiginoso da narrativa. Tratando-se de um monólogo, um longo parágrafo pontuado espontaneamente, com cortes, supressões, suspensões, numa economia de pontuação que faz do famigerado estilo de Saramago uma tímida aventura gramatical, mais ainda se impõe esta necessidade de estabelecer com o texto uma relação livre de preconceitos, como se o texto nos estivesse a convidar para uma dança, como se o que ali contasse fosse a musicalidade das palavras, o ritmo do pensamento transformado em escrita.

Enriquecida por um prefácio de Rodrigo Fresán e um posfácio da autoria de Joseph Tabbi, esta edição da Ahab (Junho de 2010) oferece ao leitor português a possibilidade de se encontrar com a obra de um autor norte-americano escassamente divulgado em língua portuguesa. O enquadramento deste texto póstumo de William Gaddis (n. 1922 – m. 1998) leva-nos a pensar estar aqui não apenas a síntese de uma obra difícil e controversa, mas, sobretudo, o legado filosófico dessa mesma obra. Neste texto, a fronteira que separa a dimensão ficcional da ensaística é demasiado ténue, não permite que nos fiquemos por uma classificação tão simples como a de novela ou «curto e curioso romance/diatribe sobre a história do piano mecânico e a automatização da arte» (Rodrigo Fresán, p. 17). Este pode ser o motivo subjacente à investigação que originou a produto final, mas está longe de ser o fim para o qual tende o testemunho registado.

No posfácio, Joseph Tabbi parece aproximar-se mais daquela que terá sido a intenção de Gaddis: «a entropia, o caos, a perda e uma cultura mecanizada e indiferente ao cultivo de talentos pessoais, individuais» (p. 98). E acrescenta: «A voz singular que emerge por entre outras vozes em competição e por entre os constrangimentos dos media não é apenas a voz de um “individualismo artístico” lutando em vão contra a mercadorização imposta pela máquina capitalista. Gaddis não se ilude imaginando que pode opor a força da sua arte à força do mundo material. O que pode, porém fazer é coordenar a sua arte com os vastos sistemas e estruturas que dão forma ao nosso mundo» (p. 105). Mas são muitas as vozes com as quais o narrador de Ágape, Agonia se confronta numa espécie de duelo que frequentemente opõe o improviso e a espontaneidade à mecanização, o saber e o conhecimento à indústria do lazer, o trabalho e o talento ao lúdico e à técnica da manipulação.

O homem arruinado, doente, às portas da morte, que fala/pensa no texto de Gaddis é já um produto anacrónico do futuro pós-humano no qual vamos submergindo paulatinamente. A evocação da ovelhinha Dolly apenas actualiza a tragédia implícita na invenção da pianola mecânica. O início do texto não deixa lugar a dúvidas: esta obra trata «do colapso de tudo, do sentido, da linguagem, dos valores, da arte, para onde quer que olhemos só vemos caos e desordem, a entropia a tomar conta de tudo» (p. 27). Como é óbvio, há uma grande dose de cinismo neste olhar, um cinismo que se opôs na extinta Grécia à idealização do mundo perfeito, o qual veio a desembocar, já no séc. XVII, nessa tragédia humana que foi a filosofia de René Descartes, autor que, curiosamente, não sendo esconjurado neste texto catártico (referem-se antes Pascal e Leibniz) como que paira sobre ele do princípio ao fim. Afinal, é ao método cartesiano que devemos o ódio ao erro que está na origem do desenvolvimento tecnológico, assim como também no princípio da derrocada do talento, do improviso, da falha como fonte insubstituível da criação artística.

A celebração do amor é a mais humana das propostas que restam a um escritor como William Gaddis, pois é nas falhas da paixão que o mundo automatizado encontra o seu necessário contraponto. Acusada a «narcotização colectiva», pouco mais resta ao ficcionista em transe de Ágape do que esperar ser expulso da República platónica, antever para as suas obras o silêncio das estantes empoeiradas, reconhecer que a sua existência não passou de uma pobre alegoria e afundar-se num turbilhão de ideias, pensamentos, opiniões, emoções e sentimentos contraditórios dos quais resulta uma música alucinante e não-mecanizada, uma música que, de alguma forma, nos restitui o lugar do artista na contemporaneidade: esfrangalhar as heranças, baralhá-las e oferecê-las de novo ao mundo com uma nova respiração e um renovado sentido do delírio. Depois de ler este texto, jamais poderei olhar da mesma forma as máquinas irritantes que substituíram as saudosas meninas da portagem de A-dos-Francos.
Escrito para o Rascunho.

2 comentários:

jaa disse...

"a tecnologia usada pelo artista usada para eliminar o próprio artista e o piano, o piano mecânico e o seu descendente o computador barricados contra o medo do acaso, da probabilidade e da indeterminação" (Pág. 62)

(É talvez irónico estar a escrever isto num computador, não?)

"a arte nasce de uma mistura de doença e fraqueza, loucura e suicídio" (Pág. 81)

Bom texto. Eu anotei algumas passagens brincando com a ideia de escrever qualquer coisa sobre o livro mas não sei se vou ter coragem para o fazer.

hmbf disse...

Irónico, contraditório ou simplesmente paradoxal, é também isso que faz a grandeza deste texto.