segunda-feira, 4 de outubro de 2010

CHRISTUS EST SCALA ET VEHICULUM

Se S. Boaventura existisse hoje, estaria riquíssimo. Desde logo porque não seria santo, seria Dr. Os seus livros, nomeadamente o Itinerário da Mente Para Deus, inspirariam corações em queda. Redes esburacadas, como hoje me disseram. Dr. Boaventura, parece que estou a vê-lo num programa da Oprah Winfrey a promover o seu mais recente best-seller. Imagino pilhas dos seus livros arrumadas nas secções de auto-ajuda, far-se-iam capas de alarme com a sua imagem, estaria espalhado por tudo o que é Top de vendas. Chamam esoterismo à estante onde se encontram estas redes esburacadas, havendo também quem lhe chame, à moda antiga, ocultismo, mas ocultismo ainda é uma palavra perigosa. O ocultismo cria-nos expectativas sobre a desocultação, é uma espécie de pornografia do que se pretende hermético, fechado, inacessível, exceptuando esses momentos de inspiração em que o hermético, fechado, inacessível fica ao alcance de todos pela módica quantia de 10, 15 ou 20€. É este o segredo do Segredo, por exemplo: pressupõe um oculto que as pessoas pretendem desvendar. Como? Lendo livros que mais não fazem do que revestir o inexplicável de imagens sugestivas. Boaventura, mestre dos mestres, desbrava-nos o caminho para Deus afastando-nos da investigação. Apela a uma relação íntima, contemplativa, que nos coloca «por detrás da treva super-luminosa do silêncio» (et invisibilium superbonorum splendoribus superimplentem invisibiles intellectus), esse lugar onde se escondem os mistérios da Divindade. Porque os mistérios da Divindade estão escondidos, urge encontrá-los como uma criança que joga a caça ao tesouro. Não havendo mapa à mão, socorremo-nos dos livros do Dr. Boaventura. Quem pode resistir aos mistérios da Divindade? O problema reside na conclusão:

Se pretendes saber como isto sucede, interroga a graça e não a ciência; o desejo, e não a inteligência; o clamor da oração, e não o estudo dos livros; o esposo, e não o professor; Deus, e não o homem; a treva, e não a claridade.

Devo dizer que sempre que me pus a interrogar o desejo não me senti lá muito inteligente. Mais informo que não tenho esposo a quem interrogar e não sei como interrogar Deus sem a ele ter chegado, matéria sobre a qual este livro versa. Se o problema é chegar a Deus, como o interrogarmos antes de a ele termos chegado? E os conselhos prosseguem:

Não interrogues a luz, mas o fogo que tudo inflama e transfere para Deus, com efusões extáticas e ardentíssimas emoções.

Isto é erotismo puro e duro, caros leitores. Não obstante, trata-se de um erotismo sádico, de algemas e chibata, para não dizer mórbido. Verificai:

Esse fogo é Deus; «a sua fornalha está em Jerusalém». Cristo acendeu-a na chama da sua ardentíssima Paixão. Só verdadeiramente o recebe quem diz: «a minha alma desejou um laço estrangulatório, e os meus ossos, a morte». Quem ama esta morte pode ver a Deus, pois é indubitavelmente verdade [o que diz a Escritura]: «nenhum homem me verá e continuará a viver».

Quem pode querer continuar a viver depois de ler o Dr. Boaventura? Só um tonto. A morte é a treva super-luminosa do silêncio onde os mistérios da Divindade são revelados. Não restem dúvidas a este respeito:

Morramos pois e entremos na treva; imponhamos silêncio às preocupações terrenas, às paixões e imaginações…

2 comentários:

fernando machado silva disse...

olha, encontrei isto hoje; assim como que um vaso comunicante. não sei se lêste o "heresiarca e cª" do apollinaire, ou se gostas dele, mas na p. 34 (da edição da vega), no conto "o heresiarca", descobri isto: "o seu discurso era tecido de palavrass untuosas, quase obscenas, mas espantosamente expressivas. é atributo dos místicos o emprego de tais palavras, o misticismo é parente próximo do erotismo".

abraço

hmbf disse...

Pois é, Benjamim, isto anda tudo ligado. ;-)