quinta-feira, 7 de outubro de 2010

ESCRITOS PORNOGRÁFICOS

A ocultação é o princípio fundador da civilização judaico-cristã. Se os gregos pretendiam privar os homens do fogo da sabedoria, os judeus do Antigo Testamento preocuparam-se em vesti-lo. No princípio, Adão e Eva andavam nus e não sentiam vergonha por isso. A vergonha surgiu quando tomaram consciência do corpo e do desejo. Estabeleceu-se então uma dicotomia que separava a carne da alma. Pela segunda, poderíamos aceder às coisas do espírito. Mas isso implicaria um corpo refreado, uma sexualidade reprimida, todo um culto sacrificial que consistia em superar o desejo, isto é, em transcender as premissas de um inconveniente hedonismo. Nos canteiros do seu jardim, Epicuro foi plantando algumas obscenidades irrepreensíveis. No entanto, ainda que atribuísse ao prazer «o princípio e o fim da vida feliz», no seu pensamento havia já a semente de uma recta filosofia que promovia a dissipação dos desejos supérfluos. Séneca encarregou-se de o contradizer recuperando o elogio do autodomínio e da vida contemplativa que vinha dos antigos: «A virtude é coisa elevada, sublime, real, invencível, inesgotável; o prazer é coisa baixa, servil, fraca, frágil, que se estabelece e permanece nos lupanares e nas tabernas». Os séculos seguintes foram de consolidação desta repulsa.

Muita água correu sob as pontes até que chegássemos onde agora estamos. O culto do corpo que marcou as últimas décadas não deixa de fazer justiça, embora de um modo perverso e talvez paradoxal, ao ocultismo da antiguidade. Falamos de algumas conquistas libertárias/libertadoras como se a toda a hora elas não acabassem renegadas pelo conservadorismo tacanho que vigora nas sociedades pseudo-democráticas. Podemos já não andar de burca, mas disfarçamos o rosto com todo o tipo de maquilhagem. A tonificação muscular, a superficialidade que subjaz a uma evidente promoção do aspecto e da sensualidade, decanta a dissimulação. A verdade é outra, permanece abjecta e pornográfica. Courbet ainda inspira desconforto moral, um desconforto semelhante ao provocado por uma professora que pousa nua para uma revista erótica. A Igreja Católica Apostólica Romana insiste em censurar a pornografia, mas não lhe reconhecemos qualquer forma de auto-censura quando está em causa o seu financiamento por empresas que lucram milhões com a divulgação dessa mesma pornografia. É verdade que muitas destas situações não têm senão uma dimensão caricatural, mas subsistem entre nós enquanto indícios de uma moralidade essencialmente hipócrita.

Herbert Marcuse chamava a atenção para a integração da obscenidade e da pornografia no grande mercado da comunicação artística. Afinal, nenhuma estrutura moral sobrevive sem ter algo a que se opor, mesmo que esse algo se torne parte integrante e imprescindível do seu funcionamento. De alguma forma a obscenidade tem vindo a ser assimilada pelas sociedades ditas democráticas. Ela está acessível, desde que em canais fechados; ela pode ser vista, desde que aceitemos os termos de serviço; ela mantém-se oculta, para que o apetite seja aguçado e o negócio não se extinga. O que está em causa nestes véus é a garantia da vergonha, uma réstia de pudicícia sexual que justifique o negócio e promova o regramento da prevaricação. Podemos prevaricar, embora dentro de limites aceitáveis, obedecendo às farisaicas regras de um mundo light e detergente. A perseguição que levou D. H. Lawrence (n. 1885 – m. 1930) a escrever Pornography and Obscenity (1929) está longe de ter terminado, desde logo porque «a verdadeira pornografia anda quase sempre oculta, não surge a rosto descoberto». Utilidade de Uma Literatura Pornográfica, conferência proferida por Boris Vian (n. 1920 – m. 1959) em 1948, chega a ir mais longe na relativização do problema: não há literatura erótica senão no espírito do erotónamo, o que há é uma compreensão subjectiva daquilo que se lê, uma compreensão que relativiza a obscenidade às mentes obscenas que a detectam.

A recente edição destes Escritos Pornográficos (Guerra e Paz, Setembro de 2010), compostos por cinco poemas, um ensaio e uma narrativa fragmentada, são um óptimo pretexto para repensar o papel da pornografia na actualidade. É Noël Arnaud quem afirma, no prólogo, que «Boris Vian apreciava pouco a pornografia, não molhava nela a sua pena e via nesse género sobretudo um exercício literário como outro qualquer que preferia deixar para os especialistas» (p. 9). No fundo, o que sempre esteve em causa neste tipo de textos foi a defesa da inteligência do corpo e do desejo. Ao defenderem-se a si próprios, os autores acusados de obscenidade defendiam o direito à expressão livre do pensamento e à livre expressão do corpo. Um corpo sem inteligência não é perigoso, desejo sem sabedoria não ameaça os credos que garantem o adestramento das paixões. Quer o leitor uma prova? Repare como em reality shows todos eles pornográficos os concorrentes são tão cuidadosos a mudarem de roupa, não vá uma mama ficar a descoberto ou uma nádega trair as audiências. Eles tomam banho de calções, elas de biquini. Repare também na recorrente exibição, em telejornais de todo o mundo, de imagens de guerra explícitas, com corpos esventrados e outras pérolas similares da ilustração do horror. Tudo isso é pornográfico, tudo isso é aceitável, porque nada disso incita à libertação do corpo, apenas aumenta a vergonha e o medo que sentimos de nós próprios.
Escrito para o Rascunho.

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