A primeira questão que me ocorre ao ler um livro como A Mecânica da Ficção (Quetzal, Abril de 2010) ─ excelente versão portuguesa de Rogério Casanova para How Fiction Works (2008) ─ é a quem pode interessar um livro destes. O autor do texto de contracapa da edição portuguesa sugere-o a «estudantes, professores e bons leitores». Tendo em conta que os maus leitores foram excluídos, o que me parece uma ingénua falha estratégica, pois a ninguém senão a essa massa dúbia de consumidores esta obra faz falta, suponho que os críticos literários e os escritores constituem um tímido, mas interessado, público-alvo para as teses de James Wood. Os primeiros, para ver se aprendem alguma coisa; os segundos, porque só lhes faz bem perceberem como funciona a cabeça dos primeiros.
Nascido em 1965, o inglês James Wood é professor de crítica literária em Harvard e exerce o ofício na The New Yorker. Aponta-se-lhe o duvidoso feito de ter transformado a crítica literária num assunto pop, o que em si mesmo induz uma contradição nos termos. No entanto, ao percorrermos as quase 280 páginas de A Mecânica da Ficção percebemos que talvez não seja bem assim. O estilo é culto e fundamentado, mas igualmente claro e bem-humorado. Entre inúmeras citações, leituras cuidadas e minuciosas, confrontações de trechos diversos, numa proliferação de exemplos que enriquecem uma argumentação pedagógica, mas nada dogmática, surgem aqui e acolá piadas, anedotas do mundo literário e apontamentos cómicos que tornam a prosa bastante apelativa.
Numa nota de rodapé, Wood confessa-se viciado no «jogo absolutamente frívolo de coleccionar exemplos de personagens secundárias que por acaso têm o nome de escritores famosos» (segue-se um curto inventário); logo a seguir conta a história do presidente da Câmara de Neza que decidiu distribuir, pela força policial local, uma série de livros cuja leitura poderia contribuir para melhorar a cidadania dos agentes policiais; e há ainda um lembrete sobre «o tipo de rotina de escrita atribuída ao escritor inglês A. C. Benson ─ não fazer nada de manhã e depois passar a tarde a descrever o que tinha feito de manhã». No entanto, não nos atenhamos em demasia às notas de rodapé.
Em boa verdade, o trabalho de James Wood consiste em desocultar os mecanismos da ficção, distanciando-se da crítica de Barthes às convenções ficcionais e esbatendo a dicotomia entre realismo e formalismo. Fá-lo em tom de palestra, interrogando-se sobre vários aspectos inerentes à arte de narrar, tais como a importância dos detalhes, a complexa relação das personagens com o autor, a questão do diálogo, a presença da metáfora, etc.. O «estilo indirecto livre» é pré-estabelecido como o mais útil à narrativa, a própria história do romance acaba por ser associada ao desenvolvimento deste estilo, pois é graças a ele que conseguimos ver «as coisas através dos olhos e da linguagem das personagens, mas também dos olhos e da linguagem do autor» (p. 27). Neste sentido, Wood define o trabalho do ficcionista pela sua capacidade de criar personagens, conseguindo pensar com elas e por elas.
Referenciado como um marco daquilo que hoje se considera ser «a moderna narração realista», Flaubert nunca é perdido de vista pelo autor de A Mecânica da Ficção. Aparentemente, uma escrita de tipo cinemático obriga o narrador a uma selecção mais rigorosa dos detalhes, «portanto a tarefa do escritor ─ ou do crítico, ou do leitor ─ é procurar o indispensável, o supérfluo, o gratuito, o elemento do estilo que não pode ser facilmente reproduzido ou reduzido» (p. 248). É nesse trabalho de selecção que reside o artifício de toda a narrativa, mormente da mais realista. «Com Flaubert e os seus sucessores, apercebemo-nos de que a escrita ideal é uma procissão de detalhes interligados, um colar de observações, e que isto é por vezes uma obstrução e não um auxílio visual» (p. 94) ─ afirma James Wood. Colocado assim, o problema parece transportar-nos para uma concepção idealista da escrita. Afinal, será legítimo falar de uma «escrita ideal»?
A resposta a esta questão obriga-nos a considerar o que esperamos de uma obra de ficção. James Wood parece pôr a tónica nas personagens. As personagens ficcionais são tão mais sólidas e cativantes quanto nos permitem pressupor a sua existência chamando-nos para dentro do seu mundo. Mais do que elaborar um tratado sobre a criação de personagens, Wood desmonta uma série de truques e inventaria técnicas utilizadas por vários autores. E conclui: «Creio que um romance fracassa, não por as personagens não serem suficientemente vividas ou profundas, mas quando não consegue que o leitor se adapte às suas convenções, quando não consegue engendrar uma ânsia específica pelas suas próprias personagens, pelo seu próprio nível de realidade» (p. 139). O que importa é a subtileza das personagens, não propriamente a sua verosimilhança.
Nascido em 1965, o inglês James Wood é professor de crítica literária em Harvard e exerce o ofício na The New Yorker. Aponta-se-lhe o duvidoso feito de ter transformado a crítica literária num assunto pop, o que em si mesmo induz uma contradição nos termos. No entanto, ao percorrermos as quase 280 páginas de A Mecânica da Ficção percebemos que talvez não seja bem assim. O estilo é culto e fundamentado, mas igualmente claro e bem-humorado. Entre inúmeras citações, leituras cuidadas e minuciosas, confrontações de trechos diversos, numa proliferação de exemplos que enriquecem uma argumentação pedagógica, mas nada dogmática, surgem aqui e acolá piadas, anedotas do mundo literário e apontamentos cómicos que tornam a prosa bastante apelativa.
Numa nota de rodapé, Wood confessa-se viciado no «jogo absolutamente frívolo de coleccionar exemplos de personagens secundárias que por acaso têm o nome de escritores famosos» (segue-se um curto inventário); logo a seguir conta a história do presidente da Câmara de Neza que decidiu distribuir, pela força policial local, uma série de livros cuja leitura poderia contribuir para melhorar a cidadania dos agentes policiais; e há ainda um lembrete sobre «o tipo de rotina de escrita atribuída ao escritor inglês A. C. Benson ─ não fazer nada de manhã e depois passar a tarde a descrever o que tinha feito de manhã». No entanto, não nos atenhamos em demasia às notas de rodapé.
Em boa verdade, o trabalho de James Wood consiste em desocultar os mecanismos da ficção, distanciando-se da crítica de Barthes às convenções ficcionais e esbatendo a dicotomia entre realismo e formalismo. Fá-lo em tom de palestra, interrogando-se sobre vários aspectos inerentes à arte de narrar, tais como a importância dos detalhes, a complexa relação das personagens com o autor, a questão do diálogo, a presença da metáfora, etc.. O «estilo indirecto livre» é pré-estabelecido como o mais útil à narrativa, a própria história do romance acaba por ser associada ao desenvolvimento deste estilo, pois é graças a ele que conseguimos ver «as coisas através dos olhos e da linguagem das personagens, mas também dos olhos e da linguagem do autor» (p. 27). Neste sentido, Wood define o trabalho do ficcionista pela sua capacidade de criar personagens, conseguindo pensar com elas e por elas.
Referenciado como um marco daquilo que hoje se considera ser «a moderna narração realista», Flaubert nunca é perdido de vista pelo autor de A Mecânica da Ficção. Aparentemente, uma escrita de tipo cinemático obriga o narrador a uma selecção mais rigorosa dos detalhes, «portanto a tarefa do escritor ─ ou do crítico, ou do leitor ─ é procurar o indispensável, o supérfluo, o gratuito, o elemento do estilo que não pode ser facilmente reproduzido ou reduzido» (p. 248). É nesse trabalho de selecção que reside o artifício de toda a narrativa, mormente da mais realista. «Com Flaubert e os seus sucessores, apercebemo-nos de que a escrita ideal é uma procissão de detalhes interligados, um colar de observações, e que isto é por vezes uma obstrução e não um auxílio visual» (p. 94) ─ afirma James Wood. Colocado assim, o problema parece transportar-nos para uma concepção idealista da escrita. Afinal, será legítimo falar de uma «escrita ideal»?
A resposta a esta questão obriga-nos a considerar o que esperamos de uma obra de ficção. James Wood parece pôr a tónica nas personagens. As personagens ficcionais são tão mais sólidas e cativantes quanto nos permitem pressupor a sua existência chamando-nos para dentro do seu mundo. Mais do que elaborar um tratado sobre a criação de personagens, Wood desmonta uma série de truques e inventaria técnicas utilizadas por vários autores. E conclui: «Creio que um romance fracassa, não por as personagens não serem suficientemente vividas ou profundas, mas quando não consegue que o leitor se adapte às suas convenções, quando não consegue engendrar uma ânsia específica pelas suas próprias personagens, pelo seu próprio nível de realidade» (p. 139). O que importa é a subtileza das personagens, não propriamente a sua verosimilhança.
1 comentário:
Este livro é um chorrilho de baboseiras, escrito por um resenhista cujo gosto novelístico permaneceu fundeado no século XIX.
O «estilo indirecto livre» é pré-estabelecido como o mais útil à narrativa, a própria história do romance acaba por ser associada ao desenvolvimento deste estilo, pois é graças a ele que conseguimos ver «as coisas através dos olhos e da linguagem das personagens, mas também dos olhos e da linguagem do autor»
Recomendo-lhe que leia o livro de Steven Moore, The Novel: An Alternative History. para ver como a história não suporta isso de modo algum. Pelo contrário, o estilo indirecto livre é uma invenção recente e o século XX, se tomarmos em conta os maiores romancistas (Wood tem de mandar abaixo Nabokov para a defender, isso deveria demonstrar a sua completa inutilidade, não?), rejeita-o em larga escala. É uma técnica especialmente para romancistas medíocres e impressionáveis que ainda acreditam que escrever um bom romance significa imitar as técnicas oitocentistas. Wood é famoso por detestar literatura moderna, dita pós-modernista; se dependesse dele não haveria Cormac McCarthy, John Barth, Thomas Pynchon, David Foster Wallace.
Wood é aquele tipo de resenhista que em vida tem muita fama, muito poder, policia gostos, mas depois é esquecido após morto. Entretanto, todos os escritores que sofreram durante o seu reinado são redescobertos mais tarde e valorizados. Alguém se lembra de um único resenhista que afundou Moby Dick? De um único que ridicularizou Madame Bovary? De um único que demoliu Lolita ou Fogo Pálido? Não. Esse é o destino de Wood: ser esquecido enquanto os grandes escritores deste geração que se marimbam para as suas teses reaccionárias caminham para a posteridade.
No futuro este livro só será conhecido em aulas de escrita criativa, o que não abona muito a seu favor. Toda a gente sabe que é aí que nasce a pior ficção actual.
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