A discrição com que João Miguel Henriques (n. 1978) vai divulgando os seus poemas, distante da mundanidade literária e dos seus reconhecíveis epicentros, desafia-nos a uma atenção que nem sempre é a mais cautelosa. Não esperando que outros deixem de se distrair com minudências grupusculares, cabe-nos, no mínimo, evitar cair nessa mesma esparrela recreativa. Entulho (Abril de 2010), folheto publicado pela Arqueria Editorial, com sede em São Paulo, leva-nos de regresso à poesia do autor de O Sopro da Tartaruga (2005). Pelo meio, escapou-nos Também a Memória é Algum Conhecimento (2009). É na internet que encontramos alguns dados sobre João Miguel Henriques: estudos de literatura em Lisboa, Jena e Edimburgo, participação no Tordesilhas, Festival Ibero-Americano de Poesia Contemporânea, uma mudança mais recente para a Eslovénia. Em 2005, numa leitura rápida do livro de estreia, detectei-lhe o gosto pelo poema breve e por uma linguagem simples, tingida por uma ligeira ironia, roçando por vezes o nonsense, com uma inclinação para o jogo formal e para a significação dúbia. São características que se mantêm, embora algo deva ser acrescentado.
Entulho colige catorze poemas breves que impressionam pelo seu elevado grau de depuração. Logo no poema inicial, intitulado Voz, percebemos uma cadência informal que oferece ao texto uma atraente sobriedade. O poema funciona como uma espécie de arte poética onde se sublinha a autonomia da voz relativamente ao pensamento, como que renegando aos versos o predomínio da razão. Trata-se, pois, de afirmar a ambiguidade dessa relação estabelecida entre o pensamento e o poema enquanto resultado de algo mais que não se escuda somente no pensamento. A voz escutada nos versos vem «do fundo do peito», é «livre / como todas as coisas boas da terra», não está cativa de derivações herméticas nem automatismos vazios de conteúdo, mas afirma-se mormente pela sua dimensão afectuosa. É uma voz que, transcendendo as cisões entre o corpo e o pensamento, entoa um canto partilhável. Neste sentido, a musicalidade é um elemento essencial nos poemas de João Miguel Henriques, a musicalidade que as palavras geram na sua conexão e o ritmo que advém desse mesmo relacionamento.
Não se julgue, contudo, que se trata de uma musicalidade aniquiladora do significado. Não só não o aniquila, como logra reforçá-lo. E nesse sentido percebemos um distanciamento da paisagem urbana que abunda na mais propalada poesia portuguesa da actualidade, um distanciamento que recusa a imundície da cidade ao mesmo tempo que afirma a poesia enquanto sobra dos afectos apagados pela vida citadina: «onde antes era possível um abraço / não resta agora mais que poesia». Não existem palavras a mais nestes poemas, a ausência de pontuação é superada por uma respiração segura e um perfeito domínio rítmico. Por vezes, algumas associações livres são traídas pela previsibilidade dos resultados (é o que parece acontecer no poema intitulado Parque), mas é raro isso acontecer. Mais frequente é os poemas de Entulho nos remeterem para uma irónica incompatibilidade entre as palavras e os objectos: «as palavras / são uma coisa / e as coisas / uma coisa diferente».
Esta essencialidade insubstituível remete a poesia para o lugar da representação, não lhe recusa a sombra das suposições, o lugar da incerteza, o predomínio dos acasos na figuração do real. Poemas como Continente, Estação ou Terra, que estão entre os mais ágeis deste conjunto, lançam-nos nesse espaço dúbio de algo que se anuncia mas ainda não sucedeu: «há-de o céu um dia / tornar-se terra revolta / desordenada / derradeira» ou «hás-de acordar por fim para a coisa nova / (ainda há tempo) / comigo ao lado, suave engano» ou ainda «a puta da terra que nos há-de cobrir a todos». Não é tanto uma certeza que aqui se expressa, mas sim uma crença alicerçada na presunção. Entre a verificação dessas presunções e o momento de as afirmar, vingam as suposições: «nesta parte incerta da cidade / terá nascido porventura algum poeta / mera suposição, é evidente, / mas de quem há muito calcorreia artérias estranhas // e eu terei lido alguma vez esse poeta / de cuja casa contemplo agora a ruína / algures por aqui / por estas ruas incertas / aceso por um fogo que apenas suponho».
Entulho colige catorze poemas breves que impressionam pelo seu elevado grau de depuração. Logo no poema inicial, intitulado Voz, percebemos uma cadência informal que oferece ao texto uma atraente sobriedade. O poema funciona como uma espécie de arte poética onde se sublinha a autonomia da voz relativamente ao pensamento, como que renegando aos versos o predomínio da razão. Trata-se, pois, de afirmar a ambiguidade dessa relação estabelecida entre o pensamento e o poema enquanto resultado de algo mais que não se escuda somente no pensamento. A voz escutada nos versos vem «do fundo do peito», é «livre / como todas as coisas boas da terra», não está cativa de derivações herméticas nem automatismos vazios de conteúdo, mas afirma-se mormente pela sua dimensão afectuosa. É uma voz que, transcendendo as cisões entre o corpo e o pensamento, entoa um canto partilhável. Neste sentido, a musicalidade é um elemento essencial nos poemas de João Miguel Henriques, a musicalidade que as palavras geram na sua conexão e o ritmo que advém desse mesmo relacionamento.
Não se julgue, contudo, que se trata de uma musicalidade aniquiladora do significado. Não só não o aniquila, como logra reforçá-lo. E nesse sentido percebemos um distanciamento da paisagem urbana que abunda na mais propalada poesia portuguesa da actualidade, um distanciamento que recusa a imundície da cidade ao mesmo tempo que afirma a poesia enquanto sobra dos afectos apagados pela vida citadina: «onde antes era possível um abraço / não resta agora mais que poesia». Não existem palavras a mais nestes poemas, a ausência de pontuação é superada por uma respiração segura e um perfeito domínio rítmico. Por vezes, algumas associações livres são traídas pela previsibilidade dos resultados (é o que parece acontecer no poema intitulado Parque), mas é raro isso acontecer. Mais frequente é os poemas de Entulho nos remeterem para uma irónica incompatibilidade entre as palavras e os objectos: «as palavras / são uma coisa / e as coisas / uma coisa diferente».
Esta essencialidade insubstituível remete a poesia para o lugar da representação, não lhe recusa a sombra das suposições, o lugar da incerteza, o predomínio dos acasos na figuração do real. Poemas como Continente, Estação ou Terra, que estão entre os mais ágeis deste conjunto, lançam-nos nesse espaço dúbio de algo que se anuncia mas ainda não sucedeu: «há-de o céu um dia / tornar-se terra revolta / desordenada / derradeira» ou «hás-de acordar por fim para a coisa nova / (ainda há tempo) / comigo ao lado, suave engano» ou ainda «a puta da terra que nos há-de cobrir a todos». Não é tanto uma certeza que aqui se expressa, mas sim uma crença alicerçada na presunção. Entre a verificação dessas presunções e o momento de as afirmar, vingam as suposições: «nesta parte incerta da cidade / terá nascido porventura algum poeta / mera suposição, é evidente, / mas de quem há muito calcorreia artérias estranhas // e eu terei lido alguma vez esse poeta / de cuja casa contemplo agora a ruína / algures por aqui / por estas ruas incertas / aceso por um fogo que apenas suponho».
Escrito para o Rascunho.
2 comentários:
Gostei, Henrique. Acho que o João se enganou no convidado para apresentar esta obra. Em boa hora me emenda...
Obrigado. :-)
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