terça-feira, 19 de outubro de 2010

O CHEIRO DA ÍNDIA

Em 1961, Pier Paolo Pasolini (n. 1922) já tinha publicado livros de poemas, o polémico romance Ragazzi di vita (1955) e realizara Accatone, a sua primeira longa-metragem. Com um currículo judiciário impressionante, fora denunciado por corrupção de menores, condenado por actos obscenos, detido por embriaguez, processado pelo romance supracitado, considerado obsceno e pornográfico, acusado de difamação, etc. Mas 1961 foi também o ano de uma viagem à Índia, na companhia do amigo de sempre Alberto Moravia, de quem a Tinta-da-China publicou há não muito o volume Uma Ideia da Índia. O Cheiro da Índia, publicado pela editora 90º, em Junho de 2008, com tradução de Miguel Serras Pereira, oferece-nos a memória que Pasolini firmou dessa viagem, a qual teve como pretexto, diga-se, o convite para participar numa comemoração dedicada a Rabindranath Tagore (1861-1941), poeta indiano agraciado com o Nobel em 1913. O título aponta para um discurso impressionista e, provavelmente, pouco reflectido, mas o resultado final alerta-nos contra as construções mitológicas que a Índia do Kama Sutra e do Taj Mahal continua a alimentar. A milhas de uma perspectiva romântica do que pudesse ser uma vivência quotidiana da religiosidade (Pasolini era, recorde-se, um homem com um profundo sentido da vivência religiosa), O Cheiro da Índia coloca-nos em ruas miseráveis e imundas povoadas por mendigos, «encruzilhadas cheias de gente descalça, vestida como na Bíblia» (p. 10), cenários de desgraça e de desolação. Entre aquela miséria atroz, típica de um país parado e dramaticamente humilde, ressalta a imagem de um povo afectuoso e brando: «A vida, na Índia, tem os caracteres do insuportável: não se sabe como se pode resistir comendo um punhado de arroz sujo, bebendo uma água imunda, sob a ameaça constante do cólera, do tifo, da varíola, quando não da peste, dormindo no chão, ou em alojamentos atrozes. O despertar de cada manhã deve ser um pesadelo. E contudo os indianos levantam-se, com o sol, resignados e, resignados, começam a ocupar-se das suas coisas: é um girar no vazio durante o dia inteiro, um pouco como se pode ver em Nápoles, mas, aqui, com resultados incomparavelmente mais miseráveis. É verdade que os indianos nunca estão alegres: muitas vezes sorriem, é verdade, mas são sorrisos de doçura, não de alegria» (p. 22). Não deixando de ser poética, esta é uma representação que nos coloca no nervo da sobrevivência. O sorriso de quem não tem nada a perder num país com vários milhões de leprosos e mais de 80% de analfabetos é um sorriso piedoso. O cheiro que Pasolini guardou da Índia foi um cheiro cadavérico, num país imenso que, curiosamente, o poeta diz pequeno pela sua uniformizada cristalização histórica. A esperança é ténue e fúnebre: «As pessoas que na Índia estudaram, ou possuem alguma coisa, ou seja como for, desempenham essa função a que se chama “dirigir”, sabem que não têm esperança: mal chegam a sair, por meio de uma consciência cultural moderna, do inferno, sabem que terão de continuar no inferno. O horizonte de um ainda que vago renascer não se desenha aos olhos desta geração, nem da próxima, e não se sabe a quais de entre as futuras se revelará enfim. A ausência de qualquer esperança expectável faz pois com que os burgueses indianos, repito, se fechem no pouco que possuem com alguma certeza: a família. Fecham-se nela para não verem e para não serem vistos» (p. 49-50). Meio século passado, talvez já não seja tanto assim. O complexo sistema de castas que Pasolini repudia poderá retardar uma efervescência social mais dinâmica e criativa, mas não tem impedido o desenvolvimento em várias frentes. Chegam-nos hoje sinais que talvez possam vir a desmentir aquilo que Pasolini farejou há 50 anos nas ruas de Bombaim e Nova Deli.

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