Raga é, em língua apma, o nome da ilha de Pentecostes, situada em Vanuatu, estado insular da Melanésia, e banhada pelo Oceano Pacífico. Le Clézio oferece-nos uma outra visão dos mares outrora navegados por Melville ou Stevenson, de terras pintadas por Paul Gauguin, que não sai nada bem na fotografia, e desse lugar próximo de Samoa, de onde nos chegaram os discursos do chefe Tuiávii. A visão idílica dos Mares do Sul desfaz-se à medida que vamos penetrando a imensidão de um oceano há muito assaltado pelo medo. Viagens de piroga, papa de inhame servida numa escudela, alimentos cozidos sobre pedras escaldantes e a beleza enigmática do céu austral são representações inerentes a um imaginário exótico que não logra encobrir uma história de exploração imposta pelos colonos ocidentais. Lembram-se os tempos da escravatura, a chegada dos colonos e das suas arrasadoras epidemias, a sensação de angústia e de desconfiança que ainda hoje paira sobre a ilha sempre que alguém de fora se aproxima. Mas nem sempre as ameaças vêm do exterior. A ilha de Pentecostes surge-nos como um lugar isolado, repleto de cumes inacessíveis, atapetados por uma vegetação impenetrável, onde vigora uma sociedade machista. A este propósito, o fabrico das esteiras de pandano, maioritariamente realizado por mulheres, veio abrir as portas a uma ténue revolução social. «Agora, as mulheres de Raga podem pagar mercadorias e serviços com as suas próprias esteiras…» (p. 40) Ainda longe da libertação perpetrada a Ocidente, as mulheres de Raga encontraram no fabrico das esteiras um forte aliado no acesso ao poder. Do relato de Jean-Marie Gustave Le Clézio sobressai um povo que aprendeu a superar as dificuldades impostas pelo seu próprio lugar e a resistir às contrariedades importadas pelos antigos colonos. «Não deve haver mais nenhum motivo para a viagem a não ser o de avaliar exactamente as nossas próprias incompetências» ─ conclui, ao mesmo tempo que procura desmistificar a pintura que durante vários séculos reduziu aquelas ilhas a lugares de depravação moral habitados por mulheres levianas e terríveis canibais. Para tal, descreve-nos com apurada simplicidade os meios de subsistência, a agricultura, os mitos, pormenores da língua, a relação dos indígenas com a fauna e a flora locais, a relação mística com o kava, «a planta que dá paz» (p. 69). Mais do que ser a palavra a reter, aventura é a palavra que Raga – Abordagem do continente invisível procura exaltar. Uma tradução de Manuela Torres, publicada pela Sextante em Dezembro de 2008.
3 comentários:
Livro fabuloso, pá! Só agora? :)
Só agora. E acabei de ler um outro cujas primeiras linhas li citadas por ti: «O Cheiro da Índia».
Cheiros comunicantes ;)
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