sexta-feira, 3 de dezembro de 2010

DOUTOR AVALANCHE

Doutor Avalanche (Setembro de 2010) é o segundo volume de contos de Rui Manuel Amaral (n. 1973). O primeiro foi Caravana (Janeiro de 2008). Ambos editados pela Angelus Novus, numa colecção intitulada Microcosmos, representam o que de melhor se vai produzindo em Portugal nesse território ambíguo do microconto. Sabemos não ser do agrado do autor este género de classificação. Tinha bom remédio, varria-a por completo dos seus livros. A confusão repete-se, involuntariamente, não só pela inclusão da obra numa colecção que se afirma especialmente vocacionada para a micronarrativa, como também por, mais uma vez, vir no final do livro um desafio editorial bastante peculiar: «seja também um microcontista». Sem pretender decalcar a toada absurda que envolve os contos de Rui Manuel Amaral, imagine-se o que seria se no final dos livros de Lobo Antunes a Dom Quixote começasse a desafiar os leitores do eterno candidato ao Nobel a tornarem-se romancistas. O pormenor não é despiciendo, induz a ilusão de um facilitismo que está longe de ser um dado adquirido.

A leitura dos contos de Rui Manuel Amaral prova-nos nada haver de fácil e gratuito na prática do conto brevíssimo. Os contos de Doutor Avalanche pressupõem um domínio de algumas técnicas narrativas que não são nada fáceis de apurar. Os mestres estão mais que identificados. É inevitável pensarmos em Nikolai Gógol quando lemos a história de um homem que, no encalço de uma orelha que lhe fugiu, deixou a língua sozinha em casa. O espírito de Franz Kafka mostra-se em situações como a do homem que «atraía todas as atenções e provocava nos outros um riso» descontrolado. Há várias fábulas que nos lembram os poemas em prosa de Russell Edson, embora o nome mais frequentemente invocado seja, sem dúvida, o de Daniil Harms. De resto, esta inevitável associação é o que menos contribui para a emancipação da prosa de Rui Manuel Amaral, a qual incorre com frequência nesse risco de um déjà vu menos apelativo. Por outro lado, haverá quem chame maturidade, ou homogeneidade discursiva, a esta repetição de processos. Seja como for, trata-se de um volume anormal no contexto literário português.

Doutor Avalanche é percorrido, ao longo dos seus quarenta e tal contos, pelo aparecimento inusitado de estrofes, grafadas em itálico, provenientes de um poema de autor italiano anónimo do século XVII. De alguma forma, o conteúdo desse poema ─ Quando gli ucceli portaranno i zoccoli ─ permite inferir a lógica que subjaz às short stories compiladas neste volume. Trata-se de uma lógica ilógica, de uma inversão de sentido que lembra Lewis Carroll. As situações insólitas vivenciadas pelas personagens de Doutor Avalanche têm a característica peculiar de refutarem a organização do mundo. Homens aparentemente banais, com profissões mais ou menos monótonas (actor, escritor, fabricante de olhos de vidro, pescador, obscuro funcionário de uma repartição ministerial…), vêem-se envolvidos em casos excepcionais: Dietrich Dhal evapora-se, Markus Grob trinca a canela da amada, certo homem «de cada vez que se via num espelho descobria em si um rosto novo e desconhecido…» (p. 45). Muitos destes casos, que recolhem manias, ironizam hábitos, representam estranhas metamorfoses, colocam o leitor numa situação de expectativa cujo desenlace raramente justifica.

Rui Manuel Amaral é exímio na arte do malogro. Usa de notas de rodapé que acrescentam vazio ao vazio das estórias, recorre ao humor e ao absurdo, por vezes ao puro nonsense leariano para desmontar chavões literários, frases feitas, clichés. Note-se o recurso desmesurado a expressões coloquiais já de si algo dúbias: «meu dito, meu feito», «o caso muda de figura», «sem tirar nem pôr», «dei de caras», «raios me partam», «força de expressão», etc. Os horríveis incidentes que povoam o seu imaginário permitem-lhe desconstruir a precisão narrativa que se impõe como definidora da suposta boa literatura. Há frases simples que definem um estilo: «Não me perguntem como é isto possível porque não saberei responder e isso não é bom para o meu prestígio de narrador omnisciente» (p. 63); «De repente, acontece uma coisa que pode parecer anormal e, de facto, é» (p. 73); «No entanto, Gerard Geldenhyus sentia-se, digamos, um pouco coiso» (p. 87). Daí que a moral a retirar destes contos não seja apenas a sugerida no remate do conto que termina a páginas 26 ─ «nem tudo no mundo tem que ter lógica ou obedecer a uma sintaxe perfeita» ─, mas também a de que as coisas têm a sua lógica e sintaxe internas (estejam estas ou não em sintonia com o resto do mundo).
Escrito para o Rascunho.

2 comentários:

Marta disse...

depois de ler este post ainda fiquei com mais vontade de ler o livro.
obg.

hmbf disse...

O prazer foi meu. :-)