quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

FOME


Ainda que sob a ressalva de a ter lido sob tradução portuguesa, confesso que a prosa da norte-americana Elise Blackwell (Austin, n. 1964) não me entusiasmou particularmente. Tudo muito certinho, no devido lugar, como um exercício académico em busca da melhor avaliação. Fome vale pela história que tem para contar e pelo registo confessional que caracteriza a narrativa. Esta novela publicada em 2003 oferece-nos o relato de um homem em estado de exame de consciência. Os factos relatados remetem-nos para os tempos da II Grande Guerra, misturam história com ficção, transportam-nos da Nova Iorque actual, onde o narrador se encontra, à São Petersburgo (ou Leninegrado) da década de 1940.

É um erro acusar-se a situação confortável do narrador. O homem é um sobrevivente com a consciência em xeque, está a sós com as suas memórias, rodeado de conservas, e procura afastar os seus fantasmas com comportamentos que não podem deixar de ser julgados em função das experiências traumáticas anteriormente vividas. No epicentro das suas recordações, ergue-se como uma luz impagável a imagem de Alena, a mulher, vítima da fome que as bombas de Hitler trouxeram. É-nos fácil julgá-lo a partir das suas confissões, nomeadamente as traições amorosas, as vacilações de carácter, a menor capacidade de resistência. Mas tudo isso nos é apresentado num momento de confissão e, ainda que não nos mova a fé cristã, é de todo admirável sentir na personagem o reconhecimento da sua verdadeira tragédia.

Durante a guerra, as privações tomaram conta da cidade. Homens e mulheres vendiam-se a troco de terem o que comer. A fome corroía o corpo, a alma, a decência, relativizava a moral, impelia as pessoas para uma angustiante inumanidade. No Instituto de Pesquisa da Indústria de Plantas foi acordado entre todos que, por mais que fosse o apelo da necessidade, ninguém se alimentaria/serviria das colecções de sementes recolhidas com tanto sacrifício. «Iremos protegê-las a todo o custo» (p. 17); protegê-las, neste caso, não apenas dos predadores habituais (ratos e quejandos), mas dos seus próprios zeladores. O carácter dúbio do narrador começa a revelar-se a páginas 20:

«Jamais vacilei ou incorri em pensamentos de fuga. Jamais abandonei uma viagem cedo, nem recusei a inscrever-me em primeiro na lista para a próxima viagem. Em todo o instituto as pessoas comentavam a minha coragem.
Por isso talvez seja um cobarde e talvez não seja. Corajoso de corpo e fraco de mente, talvez, carecendo da moral determinada e duradoura da minha Alena ou da coragem intelectual do grande director».

O tom é de autocrítica e desesperada redenção. Percebemos que entre este homem e a sua falecida mulher há uma relação de profunda admiração cuja vida não soube brindar com a pureza de um amor eventual e provavelmente feérico. A realidade é dura e, assim como as plantas que precisavam de ser protegidas dos homens, também os homens precisam ser protegidos de si próprios. Fome alerta-nos para este pormaior tantas vezes desatendido: o homem é presa de si próprio, prefere o rumor das ilusões ao desconforto da verdade, quando a fome aperta alimenta-se do que tem à mão e, assim como é capaz de morrer à fome por um ideal ou por convicção, também é capaz de sucumbir à fome por direito à vida.

Entendamos o paradoxo a partir da cruel constatação de um sobrevivente: «Onze mil passaram fome em Novembro. Mais de cinquenta mil morreram em Dezembro, quando a madeira para os caixões há muito se esgotara» (p. 47). Ter escapado a este destino, porventura por amor à vida, só foi possível em circunstâncias que agora classificamos de traiçoeiras. Mas em certos casos, em casos limite, a deslealdade não provém senão da fome mais justificável: a fome de vida. Este homem confessa a sua fraqueza, comeu sementes que devia ter protegido, traiu a sua heróica mulher em todos os planos imagináveis, só não conseguiu trair a sua vontade de viver. Pode isso ser censurado?

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