quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

PROFETAS DA CATÁSTROFE

Regresso inesperado a Mausoléu – A história do progresso em trinta e sete baladas, livro de Hans Magnus Enzensberger (n. 1929) originalmente publicado em 1975. A versão portuguesa é de João Barrento e apareceu com o selo das Edições Cotovia em Fevereiro de 2004. O tradutor chama-lhes poemas-retrato e poemas-relatório, mas podem simplesmente ser entendidos como poemas biográficos, se pensarmos na biografia como uma reconstrução subjectiva dos factos que marcaram a vida de alguém. Enzensberger escolheu um conjunto diversificado de personalidades históricas e resolveu retratá-las, não de um modo laudatório, mas de um modo crítico, como que interpelando os feitos que esses homens outorgaram à história. A questão pode ser colocada em dois planos: o que houve nas vidas privadas destas personalidades que acabou por condicionar a sua actuação pública e até que ponto a sua actuação pública pode ser considerada um degrau na dúbia escadaria do progresso. João Barrento afirma que «vistas no seu conjunto, estas luminárias lançam sobre os tempos modernos um brilho ambivalente que muitas vezes suscita a pergunta: valeu a pena? O desencanto está lá, embora não seja ingrediente único» (p. 16). Mas é, indubitavelmente, aquele que mais sobressai. Sobre Niccolò Macchiavelli: «A história, o teu auto-retrato, senhor das ratazanas / e de pilhagens, falsos juramentos e labirínticas intrigas» (p. 39). Sobre Gottfried Wilhelm Leibniz: «Vida privada: nenhuma. Interesses sexuais: inexistentes. Emocionalmente / L. é um cretino. A sua relação com os outros é a do discurso, / e mais nada» (p. 67). Inesquecíveis são os poemas dedicados a Charles Fourier, Charles Robert Darwin, Michail Aleksandrovic Bakunin ou Ernesto Guevara de la Serna. Mas de todos, o meu preferido é aquele que tem por motivo Thomas Robert Malthus. Vem a propósito:

T. R. M. (1766-1834)

Quem passou muito tempo sem comer está fraco de mais para falar,
esgaravata no lixo, não faz poesia. O que sabemos da fome
vem da boca dos que estão saciados; grande saber não será.

Grande folgazão: no verão, um pouco de remo, no inverno,
patinagem no gelo no lago da aldeia.
Durante cinquenta anos
nem uma vez o vi perder as estribeiras.

Bochechudo, molengão, contradizia a felicidade com voz firme.
A sua felicidade? A felicidade. Não havia na época qualquer ideia nova
na Europa: não haverá mais guerras, nem crimes,
nem sentenças, não haverá governos; nem doença ou sofrimento,
nem preocupações ou ódios. Resposta: Nunca consegui ter sobre as
[minhas faculdades
racionais aquele domínio que me permitisse acreditar sem meios de prova
naquilo que queria. (Ensaio Sobre o Princípio Demográfico
e sua influência em todas as futuras melhorias da sociedade
seguido de algumas notas sobre as especulações dos senhores Godwin e
[Condorcet.)

Homem simpático, bom coração. O génio e a loucura não lhe diziam nada.
Alimentava-se, honestamente, da sua sinecura, mas a obra de Süßmilch
A Ordem Divina nas Transformações do Género Humano
não o tranquilizou. Pôs-se a estudar anuários estatísticos,
abandonou a paróquia, fez viagens à Rússia e a outros lugares.
A Europa inteira ficou assustada com os resultados. Exorcismos monótonos:
este cortejo de doenças comuns e epidemias,
de carestia, pestilência, sublevações e crises de fome.

O pastor de almas da boa gente de Walesbury exalta-se
com
os prazeres mundanos, os artifícios indecorosos,
as paixões desnaturadas; mas o seu grande volume calcula pela primeira vez
as forças da natureza contidas em úteros e testículos, tal como o físico
mede a velocidade e o alcance de um projéctil
em ambientes de diferentes densidades: tudo isto
é necessariamente tal como é, e assim será sempre.

Acusador descarado da classe dominante, homem vulgar,
doutrina infame, cinismo, detestável blasfémia: falar é fácil,
mas o tempo de duplicação continua a ser
de cerca de trinta anos, e continua a valer a fórmula: P(t)=P(o)e(rt).*

É verdade que os seus cálculos não eram muito exactos. Mas uma coisa ele
[sabia:
há qualquer coisa que cresce e se multiplica sempre mais. Também o
[crescimento cresce,
também a fome cresce, o medo cresce. De faces rosadas, sentava-se,
esfregando as mãos, a tomar chá, esperava que uma mulher rosada lhe
[trouxesse
os seus muffins, sempre a mesma, com a qual ele, discreto e pudico,
dormia uma vez por mês: um intrépido cagarola,
um simulador que toda a vida se fez passar por saudável,
o grande folgazão entre os profetas da catástrofe
.


*A fórmula não é exactamente esta. Não consegui transcrevê-la correctamente para o motor de publicação do Blogger.

2 comentários:

Marina Tadeu disse...

Faço aqui um comentário sem nada a dizer. Li isto. Quero apenas assinar a data em que o fiz. Saúde e muita força.

Marina Tadeu disse...

assinalar queria dizer