Quem nos fala é um homem de 93 anos, com um currículo existencial suficientemente experiente para que a sua voz, como a de um bom professor, nos mereça toda a atenção. Nascido em Berlim, no seio de uma família de origem judaica com ligações às altas esferas culturais, Stéphane Hessel (n. 1917) naturalizou-se francês em 1937. As razões da deslocação são por demais evidentes. O início da Segunda Guerra Mundial levou-o a juntar-se ao general de Gaulle em Londres, integrando o Bureau de contre-espionnage, de renseignement et d’action. Em Março de 1944 desembarcou clandestinamente em França, foi capturado pela Gestapo, foi torturado e enviado para o campo de Buchenwald. Conseguiu escapar à forca trocando de identidade com um francês que morrera de tifo nesse mesmo campo. Transferido para o campo de Rottlebrode, de onde conseguiu escapulir-se, foi novamente capturado e colocado no campo de Dora, tendo conseguido evadir-se mais uma vez. Finda a guerra, iniciou uma longa carreira diplomática em França. Neste âmbito, uma das suas missões mais importantes terá sido a de integrar a comissão que redigiu a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
Indignai-vos é um opúsculo escrito em contexto de exame final. A consciência do fim leva Hessel a dirigir-se aos jovens e a apelar à indignação, mas uma indignação pacífica. Entende-se este sublinhado se tivermos em conta o caos que invadiu muitas das cidades europeias nos últimos anos. Os confrontos de Paris em 2005 terão sido um primeiro mas eloquente sinal. Para Hessel, este apelo à indignação deve ter por base a defesa dos valores e dos princípios do Conselho Nacional da Resistência francesa, hoje fortemente ameaçados por um poder dificilmente identificável. Torna-se urgente zelar pelas conquistas sociais da Resistência contra a «actual ditadura internacional dos mercados financeiros que ameaça a paz e a democracia». Stéphane Hessel não o afirma com tanta clareza, mas é evidente que o principal inimigo dessas conquistas sociais esconde-se por detrás dos bancos e dos interesses privados dos seus administradores:
Ousam dizer-nos que o Estado já não consegue suportar os custos destas medidas sociais. Mas como é possível que actualmente não tenha verbas para manter e prolongar estas conquistas, quando a produção de riquezas aumentou consideravelmente desde a Libertação, quando a Europa estava arruinada? Apenas porque o poder do capital, tão combatido pela Resistência, nunca foi tão grande, insolente, egoísta, com servidores próprios até nas mais altas esferas do estado. Os bancos, agora privatizados, preocupam-se principalmente com os seus dividendos e com os elevadíssimos salários dos seus administradores, e não com o interesse geral. O fosso entre os mais pobres e os mais ricos nunca foi tão grande; e a corrida ao capital e a competição nunca foram tão incentivadas. (p. 21)
Impossível não concordar com o diagnóstico, nomeadamente se tivermos em conta o agravamento das assimetrias sociais num plano internacional. As razões para a indignação são, portanto, mais que muitas. Mas este opúsculo não se restringe a uma fundamentação política da indignação na actualidade. Com os seus exemplos do passado, ele reflecte uma relação nem sempre pacífica, do ponto de vista filosófico, entre desejo de envolvimento, indignação e resistência. Hessel recorda Sartre e o seu polémico apoio a algumas acções violentas. A oposição entre a via pacífica, mas activa e militante, e a via violenta não é de agora. Teve uma curiosa expressão nos tempos da Revolução Industrial com a emergência do Movimento Ludista. No caso do presente opúsculo, a doutrina pode resumir-se em três premissas: «a pior das atitudes é a indiferença» (p. 26), «o terrorismo não é eficaz» (p. 35), na medida em que se afirma pelo exaspero e, nesse sentido, pela recusa da esperança, «é preciso preferir a esperança, a esperança da não-violência» (p. 36).
Este apelo a uma indignação pacífica, mas não pacifista, contrasta com muitos dos desenvolvimentos recentes. A «ruptura radical» com a ditadura produtivista instalada no Ocidente não se compadece com cantorias inconsequentes e manifestações esvaziadas de conteúdo, por muito participadas que possam ser. Ela deve assumir os seus alvos, nomeadamente os bancos enquanto rosto mais visível do espírito imaterial dos mercados financeiros. Uma insurreição pacífica parece já não ser suficiente, nomeadamente quando a esperança de que fala Stéphane Hessel se encontra seriamente ameaçada pela ausência de horizontes. O Estado, essa identidade a quem confiamos a defesa dos nossos interesses, responde apenas à irritação dos mercados, fazendo orelhas moucas do desespero dos cidadãos. Está mais preocupado com a saúde dos mercados do que com a saúde, propriamente dita, das pessoas. Quando assim é, este “indignai-vos, mas com juizinho”, é simpático, mas manifestamente insuficiente. Uma nota final: o prefácio de Mário Soares, na edição portuguesa, era escusado e chega a ser indigno. Não por culpa do autor, mas da editora, a Objectiva, que aí encontrou um pretexto para rentabilizar um texto cuja função primordial não é contribuir para as finanças dos editores. A tradução é de Paula Centeno.
Indignai-vos é um opúsculo escrito em contexto de exame final. A consciência do fim leva Hessel a dirigir-se aos jovens e a apelar à indignação, mas uma indignação pacífica. Entende-se este sublinhado se tivermos em conta o caos que invadiu muitas das cidades europeias nos últimos anos. Os confrontos de Paris em 2005 terão sido um primeiro mas eloquente sinal. Para Hessel, este apelo à indignação deve ter por base a defesa dos valores e dos princípios do Conselho Nacional da Resistência francesa, hoje fortemente ameaçados por um poder dificilmente identificável. Torna-se urgente zelar pelas conquistas sociais da Resistência contra a «actual ditadura internacional dos mercados financeiros que ameaça a paz e a democracia». Stéphane Hessel não o afirma com tanta clareza, mas é evidente que o principal inimigo dessas conquistas sociais esconde-se por detrás dos bancos e dos interesses privados dos seus administradores:
Ousam dizer-nos que o Estado já não consegue suportar os custos destas medidas sociais. Mas como é possível que actualmente não tenha verbas para manter e prolongar estas conquistas, quando a produção de riquezas aumentou consideravelmente desde a Libertação, quando a Europa estava arruinada? Apenas porque o poder do capital, tão combatido pela Resistência, nunca foi tão grande, insolente, egoísta, com servidores próprios até nas mais altas esferas do estado. Os bancos, agora privatizados, preocupam-se principalmente com os seus dividendos e com os elevadíssimos salários dos seus administradores, e não com o interesse geral. O fosso entre os mais pobres e os mais ricos nunca foi tão grande; e a corrida ao capital e a competição nunca foram tão incentivadas. (p. 21)
Impossível não concordar com o diagnóstico, nomeadamente se tivermos em conta o agravamento das assimetrias sociais num plano internacional. As razões para a indignação são, portanto, mais que muitas. Mas este opúsculo não se restringe a uma fundamentação política da indignação na actualidade. Com os seus exemplos do passado, ele reflecte uma relação nem sempre pacífica, do ponto de vista filosófico, entre desejo de envolvimento, indignação e resistência. Hessel recorda Sartre e o seu polémico apoio a algumas acções violentas. A oposição entre a via pacífica, mas activa e militante, e a via violenta não é de agora. Teve uma curiosa expressão nos tempos da Revolução Industrial com a emergência do Movimento Ludista. No caso do presente opúsculo, a doutrina pode resumir-se em três premissas: «a pior das atitudes é a indiferença» (p. 26), «o terrorismo não é eficaz» (p. 35), na medida em que se afirma pelo exaspero e, nesse sentido, pela recusa da esperança, «é preciso preferir a esperança, a esperança da não-violência» (p. 36).
Este apelo a uma indignação pacífica, mas não pacifista, contrasta com muitos dos desenvolvimentos recentes. A «ruptura radical» com a ditadura produtivista instalada no Ocidente não se compadece com cantorias inconsequentes e manifestações esvaziadas de conteúdo, por muito participadas que possam ser. Ela deve assumir os seus alvos, nomeadamente os bancos enquanto rosto mais visível do espírito imaterial dos mercados financeiros. Uma insurreição pacífica parece já não ser suficiente, nomeadamente quando a esperança de que fala Stéphane Hessel se encontra seriamente ameaçada pela ausência de horizontes. O Estado, essa identidade a quem confiamos a defesa dos nossos interesses, responde apenas à irritação dos mercados, fazendo orelhas moucas do desespero dos cidadãos. Está mais preocupado com a saúde dos mercados do que com a saúde, propriamente dita, das pessoas. Quando assim é, este “indignai-vos, mas com juizinho”, é simpático, mas manifestamente insuficiente. Uma nota final: o prefácio de Mário Soares, na edição portuguesa, era escusado e chega a ser indigno. Não por culpa do autor, mas da editora, a Objectiva, que aí encontrou um pretexto para rentabilizar um texto cuja função primordial não é contribuir para as finanças dos editores. A tradução é de Paula Centeno.
5 comentários:
Disse isto mesmo a propósito da manifestação "geração à rasca", num post e subsequentes comentários. Embora não concorde especificamente com os bancos serem o rosto mais visível do espírito imaterial dos mercados financeiros. Os bancos são talvez uma das faces mais reguladas e transparentes dos mercados. O problema é essencialmente político e é pela política temos de nos indignar, não apenas a nível local, mas a nível global, a única forma de inverter a tendência de especulação selvagem que agora se abate sobre povos inteiros e as gerações futuras.
Então qual é o rosto desses mercados? E como combater as políticas que se preocupam quase exclusivamente com a saúde desses mercados, colocando sobre os cidadãos o "oneroso peso" da austeridade?
A falta de rosto é precisamente um dos problemas mais graves. Os bancos têm notoriedade, marcas, gestores, são regulados a nível local nacional... podem ser responsabilizados e sofrer consequências. Olha que mesmo os bancos portugueses estão efectivamente à rasca e podem colapsar porque não conseguem comprar capitais. A CGD recorreu ao fundo de pensões e vende a sede(!)
Mas por exemplo, quem determina as taxas de juro da dívida pública portuguesa? Quais são as misteriosas bases para passar um país de A1 para A3, dessas agências de rating que não foram capazes de prever uma crise nem um dia antes? Não são responsabilizados por nada, não são regulados por ninguém a não ser por eles próprios. Que competência têm? O que os move, para além do lucro? Como é possível a taxa de juro da dívida pública comportar-se de forma totalmente irracional e em espiral? Anunciam um PEC3, levamos com ele, cumprimos e aquela merda continua a subir. PS e PSD evitam crise política, porque se houver crise a taxa sobe e, magia, a taxa sobe na mesma! Agora dizem que se não houver acordo para o PEC4 a taxa vai subir, mas que credibilidade têm se no passado nenhum dos sacrifícios teve efeito e acolhimento? Que direito têm de poder investir numa coisa destas a 8% quando tu se quiseres investir no mesmo prazo dão-te 3%? O que se passa é que esses gajos sabem que no fim o FMI ou o fundo de coesão monetária mete cá dinheiro para salvar o Euro, é uma situação win-win e quanto mais altos estiverem os juros, melhor. Felizmente a Alemanha está a perceber melhor isso e a compreender que a continuar assim, a seguir é a espanha e o Euro.
Para combater concordo contigo, tem de haver indignação a nível global e séria e não é cá com passeios. É um lobby poderosíssimo, com ramificações globais, supra-nacionais, supra-democráticas. A minha indignação é contra a existência de entidades especuladoras que dispõem da nossa vida económica sem serem sufragados por nós, sem terem rosto, sem terem uma regulação transparente e rígida porque o seu sistema é de tal forma abstracto e e complexo que é impossível de gerir e supervisionar. Activos tóxicos? Como não conseguem saber o valor de um activo que vendem e transaccionam? É um jogo de computador, um casino complexo. Os nossos políticos são culpados porque nos meteram nas mãos deles com um crescimento irreal, movido a endividamento e ciclos eleitorais demagógicos.
Penso que os nossos políticos deveriam em primeiro lugar ser sérios, transparentes, honestos, credíveis. Parece que é pedir muito. Em 2º lugar deveriam enfrentar mais determinantemente esta lógica selvagem, defender o seu ponto de vista. Portugal também é necessário à europa, assim como a Grécia ou a Irlanda. Tem de haver coesão europeia. É patético ver um PM português reduzido a moço de recados. Afinal é eleito para quê?
Teno o livrinho em francês- mas em letras minúsculas e como ando com problemas de visão,terei,possivel-mente, que usar uma lupa.
Os bancos - e longe de mim querer defender alguns banqueiros - vivem em ambiente concorrencial. Nós optamos pelo que nos oferece as taxas mais baixas no crédito à habitação. Nós optamos pelo que nos oferece a taxa mais elevada num depósito a prazo. Em grande medida, nós forçamos os bancos a procurar por todos os meios instrumentos que lhes permitam apresentar-se como instituições grandes, sólidas, lucrativas e concorrenciais e, até ao momento da crise, estamo-nos nas tintas para coisas como «capitais próprios» e «reservas» e «rácios de solvabilidade»... Numa bolha imobiliária, como a que ocorreu nos EUA e na Irlanda e em Espanha e, em menor escala, em Portugal, os bancos têm tantas culpas como as empresas que constroem sem perceber que não há gente nem dinheiro para tantas casas. E como o público que compra sem fazer bem as contas. Ou o Estado, já agora.
Quanto às agências de rating, substituam-nas por outras e o problema não desaparecerá. Obriguem-nas a ser mais optimistas e o problema, adiado, apenas se tornará mais grave. Não é mentira termos uma dívida gigantesca ao exterior. Não é mentira que não possuímos instrumentos (moeda, por exemplo) para aumentar artificialmente a nossa competitividade, como fizemos sempre (uma desvalorização é também uma perda do poder de compra, só que menos notória do que um corte salarial). Ao aderirmos ao euro, obtivemos os benefícios das taxas de juro baixas. A contrapartida - essencial - era não usar o crédito barato para crescer artificialmente, através de défices consecutivos. Falhámos. E agora queremos que outros cubram as nossas perdas. Talvez o façam. Mas é natural que não o façam satisfeitos. E que nos obriguem a pagar pela década e meia em que nos recusámos a fazer contas.
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