domingo, 27 de março de 2011

LINHAS DE HARTMANN

Que fazem um filósofo alemão do Inconsciente e um escritor austríaco de apurada veia satírica à entrada de um poema? O filósofo é Eduard von Hartmann (1842-1906), para quem a realidade não pode ser explicada sem a admissão de um Inconsciente que gera e mantém muitos dos fenómenos do mundo. O escritor é Karl Kraus, nascido na parte checa do Império Austro-Húngaro, incorrigível polemista que considerava a “psicanálise uma doença que se propunha enquanto cura”. Os dois princípios parecem opor-se. Porém, um poema tudo torna possível. Paulo Tavares (n. 1977) trouxe do primeiro o título do seu mais recente livro, Linhas de Hartmann (&, etc., Fevereiro de 2011), e pediu de empréstimo ao segundo a epígrafe para o seu poema: «Não se pode amedrontar com o absurdo um mundo que é capaz de suportar o seu fim, desde que lhe não neguem a sua apresentação cinematográfica». O conhecimento das obras destes autores não é imprescindível para a compreensão do que se segue, mas ajuda a perspectivar a natureza de “um texto” onde a palavra absurdo, enquanto síntese da realidade, parece ter um papel preponderante. Linhas de Hartmann é um longo poema, dividido em duas partes genéricas (Meio Caminho e Fim de Década) que, por sua vez, se subdividem em fragmentos de extensão diversa. Uma nota final aponta para o ano de 2004 como aquele em que o poema começou a ser delineado, o que não será estranho ao leitor atento à produção poética disseminada pela Internet na última década. Entre 2004 e a actualidade, este poema sofreu naturais modificações. Se isto revela, por um lado, preocupações ao nível da organização, por outro lado acentua a importância que o autor atribui à forma na construção do seu trabalho. É importante sublinhar que, neste caso, o conteúdo não se esgota na forma, sendo esta, antes pelo contrário, a estrutura que reforça a afirmação daquele. Há pormenores que não são despiciendos. Um deles é a utilização de parêntesis rectos como que introduzindo suspensões na dinâmica avassaladora dos versos. O poema começa precisamente com um desses momentos. Ao fazê-lo, Tavares chama-nos a atenção para o facto de este poema ser anterior à sua própria escrita, ou seja, antes do primeiro verso há uma relação com a realidade que, sendo inegável, encontra na escrita um momento, ainda que ténue, de cisão; o poema pode, então, ser entendido como um desses momentos em que, ao mesmo tempo, recuperamos o fôlego dos dias e condensamos a nossa relação com a realidade. A imagem recorrente do banco de jardim é a metáfora mais directa desta relação: «um refúgio / o banco uma tábua de salvação» (p. 11). Um outro pormenor formal é a quase ausência de pontuação, imprimindo aos versos um ritmo estonteante que mina a inclinação narrativa das descrições que percorrem o poema, sobretudo quando a paisagem urbana é captada na sua infernal hostilidade: «viver no quinto andar de um prédio dos subúrbios / velho e sujo e contíguo ao terminal ferroviário / trazia alguns inconvenientes queria dormir / vencer o cansaço a cama rangia só depois das quatro / da manhã havia algum silêncio de tempos a tempos / passava um comboio de mercadorias tardio / e os vizinhos de baixo discutiam com frequência» (p. 13). São descrições que nos remetem, a título de exemplo, para um Álvaro de Campos, cuja característica mais evidente seria a de um cansaço existencial sem solução aparente. Neste caso, as descrições são interceptadas amiúde por itálicos de índole diversa. No seu conjunto, podemos falar de um longo monólogo afectado pelos elementos que determinam a vida dos homens na urbe: a velocidade, a importância vital de suspender, mesmo que por instantes, essa terrível velocidade, o carácter extremamente agressivo e degradante do real, a poesia enquanto respiração, materializada na figura do banco do jardim («era no banco do jardim que recuperava / o fôlego desses dias»), o desajustamento do poeta à realidade, uma certa desesperança confessada na última estrofe da Parte I do poema: «continuo a correr / com o risco iminente de um ataque cardíaco / ou pior esquecer-me desistir da arte / da beleza perder a noção de equilíbrio / transformar-me em definitivo num sobrevivente / olhando para trás e julgando de uma obtusa / ingenuidade essa importância outrora alojada / em dois ou três minutos no banco do jardim / da cidade inclinada sobre o rio» (p. 27). Embora pudesse ser uma cidade qualquer, sabemos que a cidade de que fala Paulo Tavares é aquela com a qual o poeta mantém uma relação vivencial quotidiana. O cansaço aqui acusado e o desespero pressentido compõem um retrato sobre a primeira década do século 21. Mas essa década não exclui o espanto e a surpresa: «Estávamos na primeira década do século 21 / o mundo era redondo e achatado nos pólos / o Sol permanecia como astro central do sistema solar / e segundo recentes descobertas científicas os anéis / de Saturno emitiam melodias quando atingidos / por meteoritos» (p. 31). Ora, é nesta dúbia natureza − por um lado temos um monólogo, por outro lado uma paisagem − que Linhas de Hartmann se impõe como um dos melhores poemas portugueses do início deste século. Na Parte 2 do poema o tom não sofre inflexões nem exagera o tal desespero, antes parece vislumbrar numa postura mais irónica, inclusive auto-irónica, o desenredo possível para esse sentimento de deslocação aposto à realidade. Deste modo, um emprego trivial e a deferência no cumprimento das tarefas, o uniforme, a simpatia forçada e os momentos embaraçosos, a postura, o percurso entre a faculdade e o trabalho, «a lógica do tempo enquanto ruína circular» (p. 41), na sua absurda e inconsciente determinação, encontram o mais elementar dos desígnios: «o ruído da máquina de café faz-me companhia / anoitece tão depressa agora que nos afundamos em dezembro / o pátio do edifício está deserto os corredores também é sexta-feira / de uma semana perdida no calendário estamos na primeira / década do século 21 o mundo é redondo e achatado nos pólos / e de Saturno chegaram notícias surpreendentes» (p. 52). Haja esperança.

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