Podia ser um livro de auto-ajuda, muito útil nos tempos que correm, ou um daqueles guias de gestão light para yuppies emergentes (o adjectivo é redundante, mas isso pouco importa para o caso). Na realidade, trata-se de um exercício literário de aproximadamente 50 páginas. Georges Perec (1936-1982) escreveu-o em 1968 a partir de um labiríntico organigrama que lhe foi entregue por Jacques Perriault. Esta intrincada matriz acompanha um texto não menos difícil de interpretar, quer pelas suas características estruturais, quer pela complexidade do pensamento inerente ao exercício. Refira-se que se trata de um texto com um único sinal de pontuação, o ponto final no termo daquilo que pode ser classificado como uma longuíssima frase, monólogo ininterrupto de uma trama reflexiva sobre uma das mais vulgares aspirações humanas. A complexidade reside na multiplicação de hipóteses. Para cada acção prevêem-se várias consequências, a linearidade da narrativa é superada pela multiplicidade das combinações. O que importa, mais do que contar o que a personagem X fez ou deixou de fazer, é ponderar aquilo que poderá acontecer mediante esta ou aquela acção. Estamos no campo algo paranóico da especulação, da conjectura, da ponderação, do encadeamento de probabilidades, da relação causa/efeito em contexto não determinístico. Isto porque as variantes a considerar são infinitas, das mais previsíveis às mais imponderáveis e absurdas: «mr x engoliu uma espinha ao comer ovos de galinha alimentada com restos de peixe» (p. 34). Georges Perec, que fez parte do movimento experimental OuLiPo, admite, deste modo, um constrangimento inicial como suporte da criação literária. A aventura da linguagem surde da exploração lógica das combinações e das probabilidades, desenvolvendo-se o texto no sentido de uma espécie de espiral ou remoinho que caracteriza de um modo deveras plástico a organização kafkiana das empresas. Repare-se como começa a divagação do pobre assalariado: «Tendo ponderado bem» (p. 9). É esta ponderação que motoriza a experiência do pensamento num vaivém de considerações sobre o que pode ou não acontecer mediante esta ou aquela decisão. A personagem central, se assim podemos dizer, «anda às voltas no corredor» (p. 13) como quem se perde no pensamento. O Bartleby de Melville resolveu este mesmo problema do pensamento pela inacção, mas uma inacção com consequências. Logo, uma inacção activa. Neste caso, há como que uma inversão no sentido da realidade. É como se as acções levassem à inacção. Deste modo, a repetição exaustiva das palavras que expressam um pensamento tão simples quanto «é sempre preciso simplificar», num contexto onde nada se simplifica porque tudo se pondera, reforçam o encadeamento de probabilidades que levam à indecisão. O jogo não se mantém entre várias personagens, mas antes no âmago de uma mesma e pobre criatura. Perec limita-se, enquanto narrador, a arbitrar indiferentemente esse mesmo jogo: «o seu chefe de serviço que vê aonde quer chegar interrompe-o perguntando-lhe se se trata de uma questão T 60 das duas uma ou se trata de uma questão T 60 ou não se trata de uma questão T 60 mas não sabe o que é uma questão T 60 e infelizmente não posso ajuda-lo pois também não sei» (pp. 28-29). Logo a seguir, o truque repete-se: «mande o seu chefe de serviço ao TV1 não sabe o que é um TV1 o seu chefe de serviço também não e eu também não» (p. 37). As secções e os departamentos da organização/empresa são, deste modo, percorridos sem que neles alguém ponha os pés. Basicamente, trata-se de uma escrita ilusionista, cheia de truques, que opera segundo as velhas técnicas do ilusionismo: reproduzir os mesmos efeitos utilizando assessórios diferentes. A Arte e o Modo de Abordar o Seu Chefe de Serviço Para lhe Pedir um Aumento é um exercício divertido (Presença, Outubro de 2010), mas não nos enriquece nem nos livra da burocracia que o texto eficazmente reproduz.
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