Qualquer amante de livros lerá de um só fôlego e com enorme prazer Bibliotecas Cheias de Fantasmas (Quetzal, Outubro de 2010). Traduzido por José Mário Silva, este pequeno livro reúne nove textos sobre problemas concernentes à organização de uma biblioteca pessoal. A escrita de Jacques Bonnet, historiador de arte e bibliómano inveterado, é culta, mas límpida, prescinde de elucubrações complexas em prol de uma narrativa bem-humorada, repleta de episódios pessoais e curiosidades históricas. Logo a páginas 17, o problema do espaço ocupado pelos livros no interior de uma habitação é retratado com as «circunstâncias da morte do compositor Charles-Valentin Alkan, a quem chamavam «o Berlioz do piano», morto em sua casa, a 30 de Março de 1888, esmagado pela própria biblioteca» (p. 17). Daqui se conclui que todos os espaços de uma habitação são susceptíveis de servir de despensa para livros, excepto a parede à qual encostamos a cama onde dormimos. Evitando teorizar de um modo abstracto, os pontos de vista expressos são fundamentados através do exemplo e com uma destreza e brevidade que nos levam a pensar não ser tanto essa a intenção deste livro, como será mais a de declarar amor a uma arte e às manias dos seus cultores. «Consta que Gilbert Lély, o poeta e especialista em Sade, mantinha em sua casa exactamente 100 obras, nem mais nem menos, e sempre que acrescentava uma, retirava logo outra» (p. 18). Os comportamentos mais ou menos obsessivos dos amantes de livros dão azo a um anedotário infindável cujo interesse acaba por estar na confrontação com as nossas próprias manias. O bibliómano é, por natureza, um indivíduo caprichoso. Pode olhar para a sua biblioteca como se estivesse a olhar para um paraíso na terra, mas também pode ver nela uma insuportável prisão. Vem-me à memória Jean Genet, que não só não tinha morada fixa, como nem sequer possuía um único exemplar dos seus livros. No entanto, não se pode dizer que não amasse os livros. Talvez os amasse sem estar contaminado pela possessão que caracteriza os coleccionadores. Bonnet refere um «que só se interessa por autores cujos nomes começam por um B ou que, como ele, se chamam Jules» (p. 29). Na relação que mantemos com os livros, a nossa humanidade emerge envolta no manto da curiosidade. Podemos denotar alguma extravagância ou a mais entediante picuinhice na organização de uma biblioteca, no modo como catalogamos ou arrumamos os volumes nas prateleiras, no trato que damos ao próprio objecto, mas há algo que nos liga nesta relação. E esse elo é o da curiosidade. A variabilidade das práticas de leitura conflui para este elemento universal. O que nos leva aos livros é um íman que reside misteriosamente dentro da palavra impressa e nos atrai a curiosidade. Depois, sublinhamos com lápis ou caneta de feltro as frases que melhor satisfazem essa curiosidade, entretemo-nos a corrigir gralhas ou mantemos intactas e impolutas as páginas do objecto folheado. Eu sublinho: «Quanto a Bernard Berenson, ao saber que a Virgem acabara de aparecer a Pio XII, colocou imediatamente a questão que se impunha a um historiador de arte: «Em que estilo?»» (p. 102). Jacques Bonnet afirma que uma das razões que o levou a escrever este livro foi a inquietação instaurada pela última grande revolução mundial, a qual afecta de um modo ainda pouco perceptível esta relação do leitor com o livro. A pergunta impõe-se: «Teria eu construído a mesma biblioteca se pertencesse à geração Internet?» (p. 139) Independentemente da resposta, há uma certeza nela implícita: nunca uma biblioteca pode ser construída duas vezes da mesma maneira. Há entre esta e a singularidade da pessoa humana que a constrói uma ligação de propriedade, como se a biblioteca fosse uma extensão da existência. Para essa extensão o bibliófilo olhará como quem se olha a um espelho. As perguntas serão as mesmas, assim como as dúvidas. Com uma vantagem: num gesto extremo de autocrítica ou de autodesprezo, podemos sempre evitar a automutilação destruindo um punhado de livros que façam parte da nossa biblioteca pessoal.
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