domingo, 10 de abril de 2011

O REI FAZ VÉNIA E MATA

Nove textos, escritos à entrada do século XXI, compõem a colectânea O Rei Faz Vénia e Mata (Texto, Janeiro de 2011). São conferências e discursos proferidos por Herta Müller (n. 1953) antes da consagração instalada com a atribuição do Prémio Nobel da Literatura em 2009. Duas dimensões da vida caminham lado a lado ao longo das margens destes ensaios, a dimensão existencial e a dimensão literária. A autora sobrevaloriza a primeira em detrimento da segunda, referindo-se por diversas vezes ao poder da experiência vivida enquanto magma fundador da palavra escrita. Nota-se mesmo um certo desprezo quando o tema recai sobre a possibilidade de exprimir sem haver vivido, o que não deixa de ser surpreendente numa autora onde a relação entre a palavra e a realidade aparece quase sempre sob uma névoa feérica e metafórica. Importa entender esta relação na prosa de Herta Müller. Mais que uma relação meramente representativa, trata-se de uma relação transfiguradora: «As palavras são feitas à medida para falar, se calhar até são recortadas ao milímetro. (…) Não têm capacidade para representar aquilo que se passa na cabeça» (p. 20). A realidade não se deixa capt(ur)ar pela palavra, os objectos têm vida própria, uma identidade que, no fundo, acaba por fundar a nossa razão de ser. Porque a nossa razão de ser está na complexidade do pensamento, onde uma rede de associações dificilmente descritíveis ampara a lógica e a memória sob os trapézios voadores da imaginação. Quando muito, pode haver empatia entre o objecto e a palavra que o nomeia. Mas o contexto acaba sempre por determinar o significado, e o significado impõe o sentido. Daí a importância dos objectos enquanto vestígios reais de uma paisagem que o tempo tende a rasurar. O objecto, agora no sentido material do termo, é como que um resquício perdurável que nos evoca o passado e dá forma ao presente. Assim, aos pormenores biográficos que acompanham a escrita deve juntar-se a vida dos objectos enquanto reflexos da nossa própria vida. No caso, uma vida marcada pelos traumas da ditadura de Ceauşescu: «toda a panóplia de ameaças, buscas domiciliárias, interrogatórios, psiquiatria compulsiva, execuções durante a fuga, prisão, tortura, assassinato» (p. 172), o isolamento e o exílio, a asfixia, uma espécie de deslocamento apátrida, medo, muito medo e solidão, como chagas de um «bicho-coração» fundador do «olhar estranho». Tudo isto no interior de uma paisagem contornada pela dicotomia campo/cidade: «Quando fui para a cidade, espantou-me o quanto os citadinos tinham de falar para se sentirem a si próprios, para serem amigos ou inimigos uns dos outros, para darem ou receberem alguma coisa. E acima de tudo o quanto se queixavam quando falavam de si próprios. Na maioria das conversas havia um emparelhamento constante de arrogância com autocomiseração, de uma afectação narcisista com o corpo todo. Andavam sempre de um lado para o outro com aquele Eu sobrecarregado na boca» (p. 72). O Eu de Herta Müller não será o mesmo da sua escrita, mas haverá entre ambos uma empatia que a capacidade de reinventar proporcionada pela literatura logra como nenhuma outra arte. Porque a literatura é, por excelência, a arte da linguagem. E nada nos reinventa mais e melhor do que a linguagem.

3 comentários:

Mariana disse...

"Porque a nossa razão de ser está na complexidade do pensamento, onde uma rede de associações dificilmente descritíveis ampara a lógica e a memória sob os trapézios voadores da imaginação. Quando muito, pode haver empatia entre o objecto e a palavra que o nomeia. Mas o contexto acaba sempre por determinar o significado, e o significado impõe o sentido."

Tudo isso é muito curioso, recorda-me um pouco as leituras incipientes (mas também insipientes) da semiótica, nunca consegui me aventurar pelo pensamento de C. S. Pierce e entender o que ele propunha de novo, diferente.

A nossa razão de ser está na complexidade do pensamento: justo, correto. Mas haveria sucessivas camadas, e também a razão de ser está num trapézio, amparado por um outro solo, numa cadeia cuja ponta seria o significante (o signo?), mas que está distante demais para que os sucessivos elos possam garantir-lhe um estatuto de "veracidade". Seria antes "opacidade". Então qualquer verdade seria, por princípio, impossível?

hmbf disse...

Se eu soubesse alguma coisa do assunto, diria que tudo se constrói pela linguagem. Da realidade à verdade, tudo se constrói.

Sandra R. disse...

Tem tanto conteúdo. Apetece sublinhar tudo. Apetece conversar com a Herta... põe por palavras coisas impossiveis. mas é aquilo. é mesmo aquilo.