quinta-feira, 26 de maio de 2011

LA COCA

Publicado inicialmente na Holanda, em 1994, La Coca mereceu uma primeira edição portuguesa, com o título castelhano vertido para a língua de Camões − A Coca −, seis anos depois. Coube a atenção à Editorial Escritor. Os dados estão disponíveis no sítio do autor. Mais recentemente, a Quetzal redescobriu a prosa de J. Rentes de Carvalho (n. 1930) e deu início a um processo de reedição das suas obras. La Coca reaparece agora (Março de 2011) como se nem um grama de tempo tivesse passado sobre ele. Nunca é demais referir este percurso, singular no caso português, até para que o mesmo possa vir a ser pensado e ponderado no futuro. Durante várias décadas, este autor esteve praticamente ausente do convívio com os leitores do seu país de origem. Desatenção? Sonolência? Desleixo? Talvez o tempo se encarregue de clarear os trilhos desta obra, a qual, curiosamente, mantém com esse mesmo tempo uma relação complexa. Ressalvando a subjectiva importância dos factos, a verdade é que La Coca desafia, pela sua estrutura e conteúdo, a classificação de romance que lhe aparece estampada na capa. É certo que na contracapa fala-se de uma «investigação literária», designação talvez mais apropriada à narrativa em causa. Sendo impossível determinar o que neste livro existe de ficcional, é muito mais fácil reconhecer ao longo das suas 187 páginas factos, nomes, dados históricos que colocam o texto num lugar flutuante. De resto, não só parece ser do agrado do autor a confusão instaurada pelo cruzamento de realidades, como facilmente o leitor é levado a acreditar ser essa a própria intenção do narrador. Realidade ou ficção, escolha o leitor o que mais lhe aprouver. De um ponto de vista estritamente pessoal, o que me importa sublinhar é antes a capacidade de a partir de um pretexto tipicamente jornalístico (investigar os meandros do contrabando e do narcotráfico na região de Trás-os-Montes) o autor se deixar enredar nos labirintos das recordações pessoais e nos transportar, mais uma vez, aos tempos das suas infância e adolescência reflectindo, de um modo tão claro quão descomprometido, a natureza da memória. Este é, também e por isso, um ensaio sobre a memória e a relação que esta mantém com a actividade literária. As palavras finais isso declaram: «Julguei viver. Tive aventuras e medos, conheci alegrias, conheci paixões. Tudo fugidio, curto demais. Fundindo o ontem no hoje o tempo negou-me o espaço onde eu me pudesse reencontrar, tornou hostil o que pelo hábito dos anos me deveria ser querido, levou-me a olhar com indiferença o que foi familiar. E agora, constrangido dou-me agora conta de que na minha vida nunca realmente houve partidas nem chegadas, nem pessoas, lugares ou eventos. / O que nela existiu e se prolonga ainda são cenários e personagens, sombras, as imagens desordenadas da memória que, presas na narrativa, se tornam uma dupla ficção» (p. 187). La Coca tem diversos destes momentos reflexivos, sugerindo na sua malha de recordações, vivências, viagens (interior, pessoal, íntima e física), ressonâncias, tempos entrecruzados, cenários pícaros e personagens pitorescas, uma necessidade de exame da própria consciência (a evocação de Somerset Maugham não há-de ser ingénua) e, talvez mais ainda, da existência enquanto campo minado de acasos e contingências imponderáveis. Se é verdade que neste livro encontramos um retrato de um espaço e de uma época, menos verdade não será que esse retrato pode ser considerado acessório quando nele vislumbramos algo que extravasa as fronteiras do espaço e do tempo, isto é, a necessidade de um homem se encontrar consigo próprio para lá das personagens e das histórias que o habitam. E no final fica a sensação de que, no vazio ilógico das associações, um homem não é feito de outra matéria senão das histórias que tem para contar sobre as personagens que o povoam. E J. Rentes de Carvalho tem muitas. Pela parte que me toca, só tenho a agradecer que as conte.

1 comentário:

Mariana disse...

Pensar a "existência enquanto campo minado de acasos e contingências imponderáveis" é assustador.