sexta-feira, 27 de maio de 2011

O SOM A CASA

O desafio que se nos coloca quando não gostamos de um livro é tentar percebê-lo, ao livro e ao que falhou na comunicação entre o objecto e nós que com ele perdemos algum do nosso tempo. Há inúmeras razões para que essa relação falhe, umas por incompetência do sujeito, outras por defeito do objecto. Podemos partir do princípio que aquilo a que chamamos “defeito do objecto” resulta já de uma construção do sujeito e da sua incapacidade para vislumbrar nesse objecto em particular as virtudes por outros vislumbradas. Admitamos que assim seja. Nesse caso, e porque falamos da relação entre um livro e um leitor, os livros serão sempre o que são, os seus atributos dependerão da capacidade dos leitores. Em última análise, não existem maus livros; existem maus leitores. Isto faz sentido, mesmo quando falamos dessa arte literária onde tudo é possível e nada é inadmissível? Não me parece justo que se coloque o ónus desta relação apenas sobre o sujeito/leitor. Se é verdade que um livro não pode ser comparável a um instrumento cuja qualidade é avaliável em função da sua utilidade prática, também não deixa de ser verdade que facilmente reconhecemos a certos livros méritos que, por mais que nos esforcemos, não conseguimos encontrar noutros. o som a casa (Artefacto, Dezembro de 2010), de Luís Felício (n. 1982), tem a priori o mérito de haver vencido o Concurso Literário Artefacto − Poesia (2010). Portanto, alguém reconheceu a esta obra méritos que, certamente por incompetência pessoal, eu não consigo reconhecer. Organizado em sete secções (número cabalístico), às quais correspondem um poema subdividido em partes diversas, o som a casa está escrito naquele estilo enigmático que Herberto Helder consagrou e umas largas centenas de poetas depois dele banalizaram. Como muitas vezes acontece, a poesia é aqui o centro das atenções. Não a poesia enquanto matéria analisável, mas a poesia enquanto território cuja fonte se pretende decifrar. A poética da primeira secção procura distanciar-se dos ismos em vigor na actualidade, optando por uma reafirmação da metáfora e por um discurso imagético capaz de atribuir ao pó a natureza de uma flor e efervescência às elipses. A figura do anjo que logo ali aparece, e se prolonga esparsamente, parece-me algo débil para tão custoso intento. E se quase sempre os versos nos soam pretensiosos − «poema: escarlate e pétrea geografia do tumulto, / vertical ascese lunar da sombra e da água negra…» (p. 15) −, não podemos negar que quando a água se aclara tudo toma um outro sentido: «apenas posso cantar as imagens, apenas posso cantar / imagens de imagens; tão-só posso cantar o invisível movimento das imagens» (p. 18). No entanto, a preocupação desta poesia não está no sentido. Está em libertar a escrita do corpo e deixá-la fluir sem amarras de sentido. Ou, pelo menos, está em tentar perceber se isso é possível. Esta demanda de uma poesia fiel à mais mental das suas condições, aquela onde som e imagem se fundem para lá do significado, leva o poeta a questionar-se sobre um tempo anterior aos nomes, sobre uma infância posterior ao som, sobre uma pureza que coincide com o acto de respirar e que, de algum modo, reflecte a linguagem enquanto fonte de poesia. O som, no sentido de vibração, será a casa. Pois bem: terá casa o som? Portanto, o que aqui temos é uma poesia a investigar-se a si própria, a procurar entender-se nos limites da sua imaterialidade, é uma poesia enrolada na força da linguagem. Que o faça resvalando num recital que raramente resiste à tentação de uma maçadora impermeabilidade, oferecendo aos versos uma música composta por assonâncias e ressonâncias gastas e previsíveis, só é revelador de uma dificuldade existente na moderna poesia portuguesa: a de ser reflexiva sem se fechar ao leitor, a de ser mental sem ser ensimesmada, a de ser vertiginosa sem sofrer de vertigens.

1 comentário:

redonda disse...

Não li o livro, a crítica parece-me muito bem escrita. Normalmente, não leio poesia, mas esta crítica deixou-me curiosa em relação ao livro, e talvez me levasse a abri-lo, se o encontrasse numa Fnac.