segunda-feira, 16 de maio de 2011

MAR INTERIOR

Há entre a pele e o papel a coincidência de ambos alojarem manchas que o tempo traz à superfície. No caso dos homens, as manchas não valorizam o que quer que seja. A velhice tanto lhes pode acrescentar sabedoria como rancor. São assim os homens. Mas o papel ganha, com o tempo, um timbre admirável. É o caso deste panfleto, que apenas me chegou às mãos pelos bons cuidados do Rui Almeida. Pelo panfleto passaram praticamente 70 anos. Escrevia-se de uma outra maneira à época, não só no estilo como na própria língua. Coube à Editorial Império dar a conhecer os versos de Merícia de Lemos, poeta nascida em 1913 na Beira (Moçambique) e emigrada para Paris ainda decorria a década de 1940. Se bem apurei, Mar Interior (1942) foi a sua estreia literária. Ecos modernistas escutam-se no interior dos versos, uma linguagem clara mas paradoxal que torna complexa a própria palavra simplicidade: «Quero ser simples e fazer versos ingénuos.» (Desejando a Simplicidade) O Rui diz que se lembrou de Adília ao ler estes poemas, o que é inevitável perante A História do Meu Tricot. Eu lembrei-me de Ângelo de Lima ao ler Às Três Horas de Um Dia de Janeiro: «Desejo imenso ser má e tenho uma natural bondade. / Há quem nos meus poemas queira ver-me. / É verdade que quando os escrevo sou sincera, / Mas também é verdade que quando os escrevo sou imaginativa. / E porque sinto aquilo que imaginei e digo aquilo que sinto / Acontece-me ficar sem saber se escrevo o que senti ou se sinto o que escrevi.» E se alguns versos vêm corrigidos pela própria mão da poeta, conferindo à palavra desejo uma intencionalidade que não passa despercebida, mentira não será que o próprio tempo se encarregou de corrigir o que torna hoje esta poesia muito mais convincente do que à época terá sido:

DESCRENÇA

Não creio em mim, não creio em ti,
Não creio no Bem, não creio no Mal,
Não creio na Vida, não creio na Morte,
Não creio em nada.

Encontro para tudo controvérsia.

Afundo-me na minha descrença.

E eu que nada invejo
Invejo os homens que sobem até Deus só pela Fé.

E desde o Sol ao próprio chão pregunto se tudo não é apenas ilusão.
E pregunto
..................Se não é ainda uma ilusão que em nada eu creia!





Mantive a grafia original. Lá fora troveja.

5 comentários:

Mariana disse...

Há poemas que nos deixam a sensação de que nada ainda foi dito. Outros que são o que precisa ser dito. E há os que encenam a surpresa do dito/interdito. É o caso deste "Descrença".

E ainda muitos outros, que precisam ser ditos, trazidos a lume, a contrapelo da voragem do tempo.

hmbf disse...

É isso.

Já disse que gosto da foto nova? :-)

Anónimo disse...

muito bom.

ruialme disse...

Mais concretamente: ocorreu-me q Merícia poderia ser uma espécie de elo perdido entre Irene Lisboa e Adília Lopes.

hmbf disse...

Reli hoje. Grande livro de estreia.