Jonathan Swift (1667-1745), que ficou para a história da literatura como autor d’As Viagens de Gulliver, foi um inigualável praticante da sátira. Meses antes de ter nascido, o seu pai morreu e deixou a mulher sem condições de criar um filho. Swift foi levado para Inglaterra pela sua ama, mas regressaria à Irlanda, já com quatro anos feitos, para aí ficar aos cuidados de um tio. Este pormenor biográfico é importante, na medida em que nos permite compreender a sua notória ambivalência, enquanto irlandês, relativamente às revoluções anti-católicas que então grassavam na sua terra natal. Se por um lado sempre sentiu o peso da educação inglesa, por outro lado via-se na obrigação de defender a Irlanda que, ao mesmo tempo, tanto criticava. De facto, foi como protegido de Sir William Temple, historiador e político inglês, que Jonathan Swift conquistou alguma posição social, ao doutorar-se em Teologia e ao assumir, posteriormente, posições de relevância eclesiástica. Em 1708, data de Um Argumento contra a Abolição do Cristianismo, encontramo-lo como emissário do clero irlandês em Londres. Neste brevíssimo ensaio, vislumbra-se já a veia irónica do autor que André Breton não enjeitou para a abertura da sua famigerada Antologia do Humor Negro. É o segundo texto desta belíssima edição da Alfabeto (Fevereiro de 2011), com tradução de Pedro Ventura e ilustrações de Frederico Penteado. O Argumento, como qualquer texto desta índole, não tem por alvo uma entidade concreta, permitindo-se antes atacar, por via retórica, uma situação entendida em sentido lato. Neste caso, a intenção parece ser a necessidade de rebater os argumentos daqueles que têm por projecto a abolição do Cristianismo. Jonathan Swift enuncia os argumentos dos seus adversários, e rebate-os sem necessariamente os contradizer. À semelhança do que Erasmo (1466-1536) fez com o Elogio da Loucura, os contra-argumentos utilizados pesam sobre o objecto de defesa. Repare-se como à suposta vantagem de, ao abolir o Cristianismo, ficarmos com mais um dia de produção, Swift enuncia sob a forma de interrogação as características de um "domingo" passado na Igreja: «Como se pode pretender que as igrejas são mal usadas? Onde são marcados mais compromissos e encontros de galantearia? Onde se aparece nos melhores preceitos e com mais cuidado no vestir? Onde são conduzidos mais negócios? Onde se encontram as melhores pechinchas? Onde é mais conveniente e convidador dormir?» (p. 54) Quem assim se interrogava, sabia do que falava. Praticamente vinte anos depois, já como decano da St. Patrick's Cathedral, a sua pena atinge o extremo da erosão literária com o texto Uma Proposta Modesta. Nessa prosa de insofismável actualidade, a técnica já não é a do rebate retórico. Agora, o autor avança com uma proposta e enumera as suas vantagens. O propósito seria sanear, de uma vez por todas, as ruas de Dublin, acabando com a mendigagem que pululava sem fim aparente. As ferroadas no desprezo inglês são evidentes, assim como na própria postura do clero perante a miséria do povo. O sistema proposto por aquele que é hoje em dia, e para ironia do destino, um dos mais celebrados autores de “literatura juvenil”, consistia em converter as crianças mendigas do país naquilo que, para bom entendedor, elas já eram: gado. A comparação com «ovelhas, gado bovino ou suínos», convertendo as mães dos pedintes em éguas, vacas ou porcas parideiras, dá um ar do retrato social que a época merecia. As vantagens de passarem as crianças do reino a ser tratadas como leitões prontos a assar seriam óbvias: diminuição do número de papistas, melhorias de vida nos rendeiros mais pobres, incrementação das reservas nacionais, desanuviamento económico das famílias, mais freguesia nas tabernas (consta que a carne de criança é deveras tenrinha), incentivo ao casamento… Impossível saber se o comunismo, essa doutrina política que consiste, essencialmente, em devorar criancinhas ao pequeno-almoço, não terá tido nos textos de Jonathan Swift uma fundamentação literal. A verdade é que o decano da St. Patrick's Cathedral estava cheio de razão. As ruas, como hoje, não deixavam mentir nem davam lugar a ilusões. Para os explorados só havia uma solução: devorarem-se a si próprios. Foi assim no passado, é assim hoje e duvido que mude no futuro. A ver vamos.
2 comentários:
Do Swift, supremo mestre da ironia, só conhecia apenas a Proposta para acabar com a fome na Irlanda e o Gulliver...
Fantástica a sua análise!!!
É exatamente isso que eu consegui entender, ao ler o texto aparentemente doido rsrs.. Uma pena que tradutora "e literata" como CLARA AVERBUCK, de forma rasa faz leitura "literal" e se atreva a COMETER uma obra dela, publicada como MANUAL PARA FAZER DAS CRIANÇAS POBRES, CHURRASCO, comparando com a miséria do Brasil de 2006. Um verdadeiro despautério que foi bancado por uma "Editora do Bispo" ... Perdi mais tempo escrevendo isso do que folheando as paginas coloridissimas...
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