sexta-feira, 27 de maio de 2011

OBRA DE ARTE

A história de um romance tornado obra de uma vida, um intrincado processo de montagem sujeito a múltiplas versões, a busca da perfeição nos interstícios de um inferno pessoal marcado por separações, crises psicológicas, vício alcoólico, amores impossíveis, tragédias domésticas, penúria e alucinação. No termo da sanidade, a forma como Malcolm Lowry se entrega à defesa da sua obra, em carta dirigida ao editor, é pungente. Lá do México, onde vivia em 1946, encarrega-se de explicar, capítulo a capítulo, o inexplicável. Admite cortes, falhas, aceita críticas, mas não verga a uma leitura que parece pretender exigir-lhe o que ele jamais pretendeu escrever. Todos os capítulos submetidos à prova de uma leitura em alta voz, assim como à prova de uma releitura íntima e distanciada, com as personagens a serem reduzidas à dimensão de um pormenor. Porque ali está algo mais, está a vida balanceada entre o paraíso e o inferno. O mais é isto:

O romance pode ser lido apenas como uma história que nos permite saltar páginas, se quisermos. Pode ser considerado uma espécie de sinfonia ou, sob outro ponto de vista, uma espécie de ópera − ou mesmo ópera de aventuras. É jazz, um poema, uma canção, uma tragédia, uma comédia, uma farsa, e por aí fora. É superficial, profundo, empolgante e chato à vontade de cada qual. É uma profecia, uma advertência política, um criptograma, um filme absurdo e uma frase escrita numa parede. Pode mesmo ser considerado uma espécie de máquina que também trabalha, acredite, como vim a verificar. No caso de achar que faço dele tudo menos um romance, melhor será dizer-lhe que não só pretende, ao fim e ao cabo, ser um romance, como um romance − seja embora eu próprio a dizê-lo − profundamente sério. Mas também exijo que seja obra de arte um tanto diferente daquela que o senhor suspeitaria que fosse, e também mais lograda, ainda que em função das suas próprias leis.

Quem é que ainda espera isto de um romance?

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