domingo, 5 de junho de 2011

APOCALYPSE NOW (1979)




Já nem precisamos de postular um génio maligno por detrás dos desígnios humanos, tão evidente se tornou, ao longo dos séculos, a ilógica que governa o mundo. Ali duas jovens adultas, podiam ser mães, agridem, esmurram, pontapeiam brutalmente uma outra jovem, mais nova, sem que ninguém a auxilie. Antes pelo contrário, outros jovens nas imediações do acontecimento limitaram-se a gravar a cena para depois a exibirem no pardieiro da comunicação. A justiça actuou e o bastonário dos advogados, indignado com uma suposta exemplaridade da justiça, falou de perseguição medieval. Como é óbvio, a jovem agredida não era filha do bastonário. Não muito distante de onde tudo isto se passou, uma casa foi selada porque lá dentro mais de uma dúzia de crianças ficavam ao cuidado de uma ama com métodos de aquietação orientais. Uma novidade neste tipo de técnicas, o uso das bofetadas, do medo, da coerção para manter calados meninos em idade de fazer muito barulho. Alguns pais confiavam na ama, a ponto de a julgarem uma espécie de avó ao cuidado de quem os petizes ficavam enquanto a vida obrigava a afazeres que, nas sociedades em que vivemos, se sobrepõem, em importância e urgência, à educação dos filhos. Na China um jovem vende um rim para poder comprar um iPod e um iPad. A mãe só deu pelo negócio ao ver a cicatriz no tronco do filho. Salvas as devidas proporções, o cenário é de guerra. Não é preciso surfar debaixo de bombardeamentos de napalm, nem trazer à selva as coelhinhas da Playboy. A nossa capacidade de ajuizar os dias está por horas, a nossa moral ficou enterrada num mar de sangue e de lama. Há muito fomos tomados pela insanidade, nada de novo para quem esteja minimamente atento. Bem vistas as coisas, o apocalipse é esta morte lenta e nós vamos rio acima ao encontro do tal génio maligno sem nos darmos conta da sua presença por todo o lado. O absurdo delimita o campo de acção onde tudo é hoje possível. Por mais cuidadosos que sejamos na colocação dos pés não nos livraremos de pisar, aqui e acolá, a mina da estupidez, fazendo coisas das quais só não nos arrependemos por orgulho, vergonha ou medo. A guerra leva isto ao limite, é claro. A guerra é uma situação limite, apaga, ou pelo menos obscurece, aquela linha indefinível, mas que todos intuem, entre o bem e o mal, a sanidade e a loucura. Loucos estamos todos, e não é de agora, por julgarmos viável a captura do génio maligno, como se essa missão pudesse resolver os nossos problemas. Os problemas começam em nós próprios, no desequilíbrio das emoções, na incompetência para gerir fobias, desejos, ambições, na rotina com que a vida nos armadilha a vontade, na fraqueza crítica e autocrítica do espírito. Por mais defeitos que tivesse, Sócrates, o original, estava cheio de razão quando apregoava o autoconhecimento. É tudo o que nos resta. Se não nos levar à sabedoria, leve-nos, pelo menos, a uma menor estupidez.

3 comentários:

Anónimo disse...

Genial

Anónimo disse...

Muito bem!
MF

Afonso disse...

Gostei do artigo apesar de a espaços estar filosoficamente acentuado, perdendo-se um pouco num emaranhado analítico do próprio autor.