O problema da imortalidade da alma não encerra o da possibilidade de existir uma qualquer forma de vida além da morte. O primeiro foi bem explanado por Platão no Fédon e decalcado pela socialite Lili Caneças no seu conhecido resumo da obra platónica: estar vivo é o contrário de estar morto. O segundo as pessoas tentam resolvê-lo recorrendo a bruxas, videntes, parapsicólogos, médiuns, programas da TVI. No fundo, ao pretenderem comunicar com os mortos as pessoas desejam saber-se imortais, ou seja, anseiam por uma qualquer prorrogação da existência sob formas improváveis. Quanto mais improvável melhor. Nestes assuntos, a lógica tem uma estrutura peculiar: até prova da improbabilidade, considere-se provável o improvável. Isto é: se não consegues provar a existência de vida além da morte, tens de provar que a vida além da morte não existe. O busílis da questão reside num erro de princípio. A haver vida além da morte, a morte não existe. Existe apenas vida. para os padrões ocidentais isto será sempre difícil de assumir, mais que não seja pela ilógica das premissas. Como pode a morte não existir para que exista apenas vida? Certo é que a todos cabe o inevitável kaput existencial. O corpinho deixa de se mexer, a carne apodrece, os ossos fazem-se pó, os rins, os pulmões, o coração recusam a próxima dança. As experiências de quase morte falam-nos de luz, de leveza, de uma certa forma de energia que, lá vem o Caneças da Academia, se liberta do corpo, essa terrível prisão, e vai desta para melhor. Atentem-se na expressão: desta para melhor. O além da morte é sempre melhor, o outro lado da vida é só leveza, paz, silêncio, calma. O inferno ou não existe ou ainda não foi sentido, experimentado, por ninguém em fase post mortem. Provavelmente as pessoas que tiveram essas experiências eram todas boazinhas, tinham-se em óptima conta, e por elas aguardava apenas a leveza do paraíso. Desde já confesso que o meu cepticismo não vai tão longe. A acreditar numa outra forma de vida que não esta, espero que seja pelo menos tão infernal. Os seres humanos merecem a guerra, seria indecoroso oferecer-lhes apenas a paz. Hereafter, de Clint Eastwood, aborda estas questões. Excelente título, dificilmente traduzível para a língua de Camões, mas com indícios de uma ambivalência nem sempre clara no cinema deste vidente. No filme, o dom de falar com os mortos transforma-se numa maldição. O médium no centro da acção, homem admirador de Charles Dickens, preferia não ter contactos com o after. A única coisa que ele deseja é um here normal, exequível, digamos assim, um here que lhe permitisse viver a vida por que está a passar mesmo sabendo que a outra há-de um dia chegar. A mensagem, a haver uma mensagem nestas coisas, será: para que queres saber se existe uma vida além desta? Não preferes saber o que é esta? A charlatanice ameaça o tema, mas não o consome, porque no centro da narrativa está o desejo de uma vida simples. Lembrei-me de The Elephant Man enquanto via Hereafter. Cada um dos protagonistas é uma aberração na demanda de um direito básico: uma vida normal. Repare-se como em Hereafter é esse o verdadeiro problema: um jovenzito perde o seu irmão gémeo enquanto ambos tentavam ajudar a mãe a libertar-se da toxicodependência, uma jornalista famosa vê o seu estatuto ameaçado na sequência de uma experiência traumática, o vidente deseja não ver. Todos eles querem uma vida simples. Todos eles tocados pela morte, buscam uma só coisa, a mais importante: uma vida simples. Esta, agora, aqui. A de depois logo se verá.
terça-feira, 7 de junho de 2011
HEREAFTER (2010)
O problema da imortalidade da alma não encerra o da possibilidade de existir uma qualquer forma de vida além da morte. O primeiro foi bem explanado por Platão no Fédon e decalcado pela socialite Lili Caneças no seu conhecido resumo da obra platónica: estar vivo é o contrário de estar morto. O segundo as pessoas tentam resolvê-lo recorrendo a bruxas, videntes, parapsicólogos, médiuns, programas da TVI. No fundo, ao pretenderem comunicar com os mortos as pessoas desejam saber-se imortais, ou seja, anseiam por uma qualquer prorrogação da existência sob formas improváveis. Quanto mais improvável melhor. Nestes assuntos, a lógica tem uma estrutura peculiar: até prova da improbabilidade, considere-se provável o improvável. Isto é: se não consegues provar a existência de vida além da morte, tens de provar que a vida além da morte não existe. O busílis da questão reside num erro de princípio. A haver vida além da morte, a morte não existe. Existe apenas vida. para os padrões ocidentais isto será sempre difícil de assumir, mais que não seja pela ilógica das premissas. Como pode a morte não existir para que exista apenas vida? Certo é que a todos cabe o inevitável kaput existencial. O corpinho deixa de se mexer, a carne apodrece, os ossos fazem-se pó, os rins, os pulmões, o coração recusam a próxima dança. As experiências de quase morte falam-nos de luz, de leveza, de uma certa forma de energia que, lá vem o Caneças da Academia, se liberta do corpo, essa terrível prisão, e vai desta para melhor. Atentem-se na expressão: desta para melhor. O além da morte é sempre melhor, o outro lado da vida é só leveza, paz, silêncio, calma. O inferno ou não existe ou ainda não foi sentido, experimentado, por ninguém em fase post mortem. Provavelmente as pessoas que tiveram essas experiências eram todas boazinhas, tinham-se em óptima conta, e por elas aguardava apenas a leveza do paraíso. Desde já confesso que o meu cepticismo não vai tão longe. A acreditar numa outra forma de vida que não esta, espero que seja pelo menos tão infernal. Os seres humanos merecem a guerra, seria indecoroso oferecer-lhes apenas a paz. Hereafter, de Clint Eastwood, aborda estas questões. Excelente título, dificilmente traduzível para a língua de Camões, mas com indícios de uma ambivalência nem sempre clara no cinema deste vidente. No filme, o dom de falar com os mortos transforma-se numa maldição. O médium no centro da acção, homem admirador de Charles Dickens, preferia não ter contactos com o after. A única coisa que ele deseja é um here normal, exequível, digamos assim, um here que lhe permitisse viver a vida por que está a passar mesmo sabendo que a outra há-de um dia chegar. A mensagem, a haver uma mensagem nestas coisas, será: para que queres saber se existe uma vida além desta? Não preferes saber o que é esta? A charlatanice ameaça o tema, mas não o consome, porque no centro da narrativa está o desejo de uma vida simples. Lembrei-me de The Elephant Man enquanto via Hereafter. Cada um dos protagonistas é uma aberração na demanda de um direito básico: uma vida normal. Repare-se como em Hereafter é esse o verdadeiro problema: um jovenzito perde o seu irmão gémeo enquanto ambos tentavam ajudar a mãe a libertar-se da toxicodependência, uma jornalista famosa vê o seu estatuto ameaçado na sequência de uma experiência traumática, o vidente deseja não ver. Todos eles querem uma vida simples. Todos eles tocados pela morte, buscam uma só coisa, a mais importante: uma vida simples. Esta, agora, aqui. A de depois logo se verá.
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3 comentários:
"A única coisa que ele deseja é um here normal, exequível, digamos assim, um here que lhe permitisse viver a vida por que está a passar mesmo sabendo que a outra há-de um dia chegar. [...] para que queres saber se existe uma vida além desta? Não preferes saber o que é esta? "
O problema será mesmo esse, se se pre-ver o depois do futuro, esse futuro chega antes do tempo e não se vive hoje. Por isso, uma vida simples talvez seja o desejo de apenas viver o momento sem saber que é o último. Deixar as coisas correr sem pensar em planos cósmicos, um pouco de inocência não faz mal, acho que se souber tudo cometem-se decisões erradas que só por orgulho não sugerem arrependimento.
O espírito de alguém que morre vive sempre na memória dos que cá ficam, em maior ou menor grau.
Não ví o filme mas concordo.
Genial. É mesmo isto. Obrigada.
Isabela
É mesmo isso. Obrigada.
Isabela Figueiredo
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