segunda-feira, 4 de julho de 2011

O NAVIO DOS HOMENS

A escravatura que acabou não acabou com as dezenas de suicídios de funcionários da France Telecom, nem com as dezenas de portugueses recrutados para trabalho escravo em Espanha, muito menos com o tráfico de brasileiras para fins de prostituição na Europa, não acabou com a exploração sexual de jovens tailandesas, sempre disponíveis para a satisfação dos desejos das classes ocidentais endinheiradas, não pôs um termo ao mercado negro de órgãos humanos, negócio que, nos idos de 2005, já rendia cerca de dez mil milhões de dólares por ano. Não, a escravatura que acabou não acabou com a escravatura. Ainda que assalariada, a esmagadora maioria dos trabalhadores é hoje mal paga. À escala nacional, isso é evidente se tivermos em conta o salário mínimo nacional, um salário mínimo transformado em salário médio pela ganância das empresas. As pessoas podem não ser forçadas a trabalhar mais do que aquilo a que os seus contratos obrigam, mas são profundamente condicionadas nas suas decisões. Sobre elas paira constantemente o fantasma do desemprego. A manipulação, a coação, a pressão psicológica, difíceis de determinar e de provar, são exercidas diária e impunemente sem outros objectivos que não sejam os de levar o trabalhador a render o mais possível, ou seja, exigir o máximo retribuindo com o mínimo. Esta é a realidade do mundo actual, certamente muito mais grave na China do que na Grécia, na Irlanda ou em Portugal. Mas queremos nós copiar os chineses? Será nossa vontade sacrificar a vida inteira em função de um ostracismo financeiro que nos garanta meia dúzia de bens materiais sem os quais nos fazem crer não valer a vida a pena? Andamos a educar os nossos filhos para uma vida feliz e livre ou para uma vida subjugada ao consumismo? Um dia, provavelmente já não tão distante quanto isso, as pessoas terão de parar para ponderar sobre as mais fundamentais das suas decisões: preferem viver com menos bens materiais mas mais tempo disponível para o usufruto da vida, ou optam por uma existência amarrada ao consumo de bens supérfluos que para pouco ou nada servem? Se a resposta a esta primeira questão se torna essencial, a dúvida seguinte é da mais elementar justiça: ainda é possível usufruir da vida? Se pensarmos num mínimo de 8 horas de trabalho diárias a troco de um salário mínimo, a resposta afigura-se-nos desnecessária. Há praticamente 100 anos, um rapaz japonês interregova-se sobre estas questões. De seu nome Takiji Kobayashi, nasceu a 13 de Outubro de 1903 e faleceu, vítima de espancamento, a 20 de Fevereiro de 1933. os poucos anos de vida permitiram-lhe escrever um dos mais emblemáticos romances de protesto de que há memória. O cenário de Kanikosen é «um barco-fábrica destinado à pesca do caranguejo», representação microcósmica da luta de classes e da exploração laboral. A escrita seca de Kobayashi pode parecer desinteressante, mas retrata sem contemplações a desumanidade do patrão e a miséria a que a tripulação do navio estava sujeita: «os pescadores amontoavam-se como porcos e, como numa pocilga, o cheiro dava vontade de vomitar» (p. 14), «tinham as mãos inchadas como se fossem pinças de caranguejo, e para as aquecerem enfiavam-nas debaixo dos braços, ou formavam com elas uma concha à frente da boca e sopravam» (p. 27). Muitos operários eram jovens de 14 ou 15 anos, estudantes levados pelo desespero a esta condição. Sucessivamente castigados, “humilhados e ofendidos”, permitiram que a raiva emergisse e os erguesse da “descida aos infernos” para onde haviam sido impelidos pela necessidade. O fim destas histórias é quase sempre o mesmo, pouco varia na sua calculável instigação ao motim, à sublevação, à organização de forças colectivas em prol da justiça e da igualdade. Pode ser um discurso estafado, mas não deixa de fazer sentido. Tanto sentido faz que Kobayashi acabou como se sabe e outros como ele são hoje vituperados e olhados de esguelha como inimigos da liberdade individual e da capacidade de cada um para vingar e ter sucesso numa sociedade claramente oligárquica, “caciquista”, cada vez mais feudal e tendenciosa, habilmente promotora de um nepotismo descarado ao qual vão fazendo vénias, inclusive, os sacerdotes do desdém. A versão portuguesa do romance Kanikosen - O Navio dos Homens é da responsabilidade de Maria João Freire de Andrade e foi publicada pela Clube do Autor em Outubro de 2010. Fica a sugestão.

2 comentários:

maria disse...

e parece uma boa sugestão.

Sandra R. disse...

"ainda é possível usufruir da vida?" ainda bem que te vim ler! Vou à rua andar e respirar... (do Vasco Gato: "Esta pressa de obsoleto. Que bulimia existe em nós que não nos permite a leveza de não precisar mais.")