sábado, 2 de julho de 2011

REALITY SHOW



2011 não é só coisas más. De uma criativa cumplicidade entre Bibi Pereira (lá do alto a olhar-nos com a obstinação de sempre), Nuno Moura, Pedro Serpa e Zé Luís Costa, surgiu a Mia Soave, editora com nome de baptismo pedido de empréstimo a Ângelo de Lima, o poeta de Rilhafoles. É a segunda aventura de Nuno Moura nos terrenos da edição. A primeira foi com a Mariposa Azual, entretanto renascida das cinzas por outras caras-metade. A Mia Soave inova e aposta com segurança na diferença. É isso que esperamos da poesia. Ao livro junta um “bónus editorial”, ou seja, um CD. Não se trata de audiolivro, trata-se de dois objectos distintos unidos pela aventura da palavra. O poeta escolhido para a estreia foi Alberto Pimenta, nome mais que sublinhado das letras portuguesas. Basta passar os olhos pela Obra Quase Completa (Fenda, Maio de 1990) ou pelo famigerado e sempre pertinente Discurso Sobre o Filho-da-Puta (idem, Abril de 1991) para lhe perceber a relevância − não só nos domínios da poesia dita experimental, como também, e sobretudo, no domínio da poesia-ponto-final. Degrau (Cuidado), isto é, Ana Deus, Alexandre Soares, Pedro Augusto e João Alves, reinventam poemas de outras instâncias, tais como Civilidade, a Canção de Camila ou Coca-Cola Song. Um dos melhores momentos de “spoken word” gravados em Portugal. Já o livro, parece recuperar e estender à exaustão um antigo e excelente poema de O Labirintodonte. Intitula-se teatro da guerra. Recordemo-lo: «no teatro / da guerra / cada dia / trabalha / nova companhia. / mas permanece / o encenador / e a peça / é sempre / do mesmo autor. / o actor / esse fenece / esse fenece / com a cena / com a cena / e desaparece. / é um teatro / realista / que a toda a hora / muda de artista. // mas de hora a hora deus melhora». Mudam-se os tempos, persistem as guerras. Reality Show ou a alegoria das cavernas (Fevereiro de 2011) tem implícito no título as premissas de um olhar sobre o mundo, onde estética e ética se conjugam para que no poema vários planos possam conviver em inegável coerência. Os círculos da capa, quer na sua forma de alvo, quer enquanto alusão aos círculos formados pela pedra que cai sobre as águas, são uma óptima ilustração da expansão da realidade levada a cabo no e pelo poema. O reality show, neste caso, é a própria vida exercida no teatro da guerra, palco onde a performance do indivíduo se confunde com as ignaras batalhas travadas por um exército de iludidos. Este reality show não nos dá a observar o comportamento das bestas em cativeiro, mas permite construir uma alegoria sobre os destinos da humanidade. Talvez seja esse o papel do poeta, como em tempos terá sido o de Pieter Bruegel, o velho, ao pintar uma elucidativa parábola dos cegos. Também o poema performativo de Alberto Pimenta, nas suas três partes (I – Prólogo no céu, II – Acto na terra, III – Epílogo numa região intermédia) interligadas, representa satiricamente uma humanidade em queda. Versos curtos e ausência de pontuação intensificam a imagem central de pessoas caindo para dentro de um poço. Em era cibernética, esse poço pode assumir diversas interpretações. Pode ser, por exemplo, o poço onde agora a leitura chega ao leitor e a realidade se transforma numa alegoria de si mesma. Daí que ao longo do texto de Pimenta nos apercebamos da presença de elementos facilmente identificáveis na história recente, misturados com «histórias paralelas e cruzadas / trabalhos vários de criação» (p. 51) que repercutem a lógica caótica do mundo. Tal como no poema acima transcrito, estamos num «teatro / realista / que a toda a hora / muda de artista. // mas de hora a hora deus melhora». Entretanto melhorou a rede de esgotos, «o esgoto / sem o qual / difícil dar saída à humanidade» (p. 56), e a escatologia do mundo actual, nas suas velhas e rotineiras retumbâncias, terá de ponderar a possibilidade de uma esperança em endereço virtual. Estarmos aqui, neste preciso momento, é a prova desse refúgio com consequências para já imprevisíveis. Vários mundos paralelos num só mundo coexistem, uns não negam os outros, apenas permitem a quem neles viva a possibilidade de um trânsito outrora inexistente. Isto tem as suas vantagens e as suas desvantagens. Ao fim e ao cabo, como conclui o poeta, «sabemos o que se pode fazer / para salvar a humanidade / importante é só / que cada um não finja que é / aquilo que parece».

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