quarta-feira, 31 de agosto de 2011

DAISY MILLER

Na introdução a esta edição de Daisy Miller (Penguin, 1986), o falecido professor de literatura Geoffrey Moore afirma que a novela de Henry James dividiu os leitores norte-americanos em dois tipos: Daisy Millerites e anti-Daisy Millerites. Isto hoje seria remotamente possível. Não por qualquer falha na prosa de James, cujo estilo fica bem sintetizado na expressão down-to-earth (aquilo a que alguns críticos portugueses menos exigentes tenderiam a classificar de realismo), mas porque Daisy Miller não passaria de uma vulgar e algo decepcionante jovem. Lida à luz da época, a mulher carregava sobre os ombros o peso de uma formalidade deveras opressora e pouco consentânea com a soltura da jovem em causa. Hoje, o que então era classificado de impróprio, é impróprio de outra maneira, é careta.

De certa forma, o tempo foi inimigo de Daisy Miller. Se interpretarmos a obra sob o prisma de uma oposição entre o modo de vida norte-americano e o modo de vida europeu, facilmente nos confundimos com o esbatimento das delimitações que então ainda separavam o Velho do Novo Mundo. As poucas diferenças que ainda se verificam são demasiado ténues para que insistamos em oposições ou conflitos culturais. No mesmo desvairado turbilhão de elementos, vamos encontrando pólos de resistência, mais ou menos identificáveis, a um irreversível processo de aculturação. Por outro lado, a perspectiva da libertação feminina, quer na sociedade europeia, quer na sociedade norte-americana, já não deixa espaço para grandes reivindicações. As assimetrias que persistem em justificar a luta feminista foram sendo naturalmente secundarizadas pela emergência de novos grupos de maltratados, os quais souberam chamar a si a importância da transformação social.

Ora, neste sentido, Daisy Miller podia ser hoje em dia uma espécie de José Castelo Branco, a ave rara que motiva tanto escárnio quanto ódio, o indivíduo para o qual as atenções se viram por culpa da sua excentricidade. O que os/as afasta é de pormenor. Daisy Miller é naturalmente mulher, cativante pela beleza, sedutora pela informalidade. Um flirt. Já José Castelo Branco é artificialmente andrógino, repugnante pelo grotesco, repelente pela extrema e previsível solenidade que exibe a toda a hora. Um bluff. Que as televisões o transformem em estrela, que os jornais o chamem à página, que as revistas o persigam, diz bem da pobreza de espírito da sociedade globalizada em que vivemos. Somos parte integrante desta decadência porque não logramos não sê-lo, é-nos inevitável. Não foi dado ao homem o dom de sair da sua abjecta humanidade. Não admira, pois, que esse produto nascido em Moçambique, criado num dos mais conservadores dos países europeus e emigrado para a capital do Império, possa tornar-se num símbolo da globalização tal como a fomos absorvendo. Sempre que vos falarem em globalização pensem no José Castelo Branco. Verão que o efeito é esclarecedor.

Mas há, por fim, uma dimensão em Daisy Miller que a enobrece e a livra de qualquer perspectiva mais rebuscada ou redutora. É uma dimensão universal porque pode ser chamada a todos aqueles que, independentemente da sua matriz sociocultural, nascem com os pés fora da camilha maioritária, os desabrigados, as chamadas ovelhas negras, os extraviados do rebanho, os solitários. O carácter espontâneo − ingénuo aos olhos de uns, impuro aos olhos de outros − de Daisy Miller não prefigura apenas aquele vitalismo facilmente detectável nos autores do Novo Mundo. O que há de natural em Daisy Miller é a sua morte prematura, é a constatação de que toda a autenticidade sucumbe à doença dos tempos, a domesticação imposta por uma sociedade incapaz de conviver com os desejos dos seus corpos. Não sabemos se a jovem Daisy era inocente, cremos apenas que Henry James não foi inocente ao criá-la, ainda que se tenha defendido chamando pura poesia à sua criação.

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