sábado, 1 de outubro de 2011

MARIAS PARDAS





Marias Pardas (& etc, Março de 2011) oscila entre o denominado poema em prosa e aquilo a que agora se chama micronarrativa. São textos breves, agrupados em sequências, com uma componente diegética onde a poesia se instala já não apenas como metáfora mas, sobretudo, enquanto espaço de libertação da língua. A primeira sequência, intitulada Maria Parda, revela uma terceira pessoa em ruptura com todo o género de convenções. As imagens são sugestivas de um espaço degradante («sujidade das ruas», «a podridão dos sonhos», «ruas pardas»…) onde a sobrevivência se mantém pendurada por molas. Álcool disparado contra a solidão, blasfémias e impropérios proferidos como quem deixa escapar um pouco da cólera contida. Um universo de clochards que interroga a poesia sem grande efeito: «Ainda ouviu dizer que uma porrada de palavras a que chamavam poema era uma droga imparável, moto-contínuo de urina contra a parede, como qualquer roda rolando montanha abaixo, uma enxurrada de sinais gráficos a alienar-lhe os cornos e a mancha azul das olheiras. / Mas nada disso lhe interessava nem sequer sabia cagar efeitos» (p. 20).

Também Jesus e Goethe preferiam a companhia das putas. O papel do poeta, nestes casos, é excessivamente metódico. Ele observa e anota, não se furtando aos diagnósticos e, por vezes, avançando com teorias sobre os problemas. Já libertos do círculo lírico de um Eu ensimesmado, os olhos voltam-se para fora e deixam-se tomar pela paisagem. Agreste, sem dúvida, mas apelativa pelo lado libertário das personagens. Há uma certa intelectualidade que aprecia deveras o género, fazendo bandeira no poema da erosão sentimental e de uma linguagem desassombrada, ordinária, que a vida geralmente impede. A segunda sequência tem nome próprio: Marlene. Aqui é já o Eu quem fala, dirigindo-se a terceira pessoa como quem confessa uma desintegração ou, se quisermos, uma inadequação ao mundo: «Marlene, doem-me os pulsos, e já pouco mais me existe além do verde dos teus olhos, nesta cidade que nos mastiga diariamente» (p. 31). O mal-estar quotidiano toma conta da situação, a luz ao fundo do túnel é a luz parda de uns olhos longínquos, provavelmente também eles carentes de sentido.

Marlene é fonte de desejo, mas é também, e provavelmente mais que tudo, tubo de escape. É figura ao mesmo tempo mitológica e vivificante. É lugar de fuga e de restituição de uma ansiada paz interior, é o abrigo dos corações desavindos e das almas saturadas. Mas nem tudo se pode contar a Marlene. Esta impossibilidade de comunicação absoluta institui os limites da própria poesia, atira para a sarjeta a parangona da “poesia-verdade-absoluta”, da “poesia-revelação”, cedendo ao fingimento, ainda que travestido de castiça linhagem, imposto pelas circunstâncias: «Hei-de amar-te sempre, enquanto não tiver a luminosidade dos teus olhos a abafar-me aquela erecção que levarei até ao teu regaço, para que o acolhimento sem mácula desfaça o teu comércio dos enganos, a exploração dos operários das fábricas insolventes de caralhos de silicone, com um gestor de genitais ridículos, / e humidades fora do tempo e do lugar, / ah, Marlene, se te pudesse contar tudo! / Sinto a língua tão presa para te dizer que nasci numa aldeia da Beira-Baixa e tomei banho num rio inocente, só porque isso te poderia ofender, amo-te, toca-me aqui que eu gosto imenso, era só» (p. 41).

O volume termina com uma sequência intitulada Sem Nada. Nestes textos finais, reveladores, estamos no centro de onde, afinal, nunca chegámos a sair, esse Eu absoluto, castrador, inverosímil que toda a arte, incluindo a poesia, devia tentar aniquilar de uma vez por todas, mesmo que isso implique a morte própria. Missão impossível, por certo, mas que não deve impedir esforços. O vazio instala-se, assim como uma nostalgia estafada e impaciente. Tudo se perdeu, tudo nos roubaram, o mundo de hoje é tão insuportavelmente desapiedado. O tempo dita as regras, o vento tudo leva, mas de algo não nos livramos mesmo quando nos passam pelas mãos textos destes, o de sentirmos que tudo mudou para que tudo, afinal, ficasse na mesma. Não me lembro de que tenha sido diferente. Já Sócrates, e outros antes dele, se queixavam do mesmo. A pilhagem continuará, e nós a escrevermos desabafos. O livro é dedicado à actriz Maria do Céu Guerra.

2 comentários:

fernando machado silva disse...

olá henrique,

uma vez que aprecio as tuas críticas literárias queria somente deixar aqui um comentário/sugestão que, talvez, fortaleça a tua leitura da primeira parte de "maria pardas". a dedicatória à actriz maria do céu guerra, parece-me, indica a possibilidade de um diálogo especialmente entre o "maria parda" de antónio ferra e o "pranto de maria parda" de gil vicente interpretado pela mesma actriz, interpretação que maria do céu guerra procurou contemporaneizar a personagem vicentina, embora já patente no texto a deambulação alcoólica e a crítica à cidade (reino). cruzar os dois textos talvez não fosse mau de todo.

abraço

hmbf disse...

viva, muito obrigado pela informação. a minha ignorância não iria tão longe. só peço que não se chamem a estes textos críticas literárias, é uma luta antiga que os leitores do blog teimam em não aceitar. isto são meras impressões escritas sobre o efeito causado pela leitura. obrigado e abraço,