Já terão ouvido falar n’O Caso das Criancinhas Desaparecidas. Luiz Pacheco ficcionou-o há umas décadas numa das suas novelas, criancinhas desaparecidas no lago das Caldas da Rainha que iam parar à Lagoa de Óbidos através dos esgotos da cidade. Depois transformavam-se em sereias, se fossem meninas, ou em duros querubins, se fossem rapazes. Portugal é um país propenso a este género de enigmas, terreno fértil em metamorfoses várias de onde brotam figuras híbridas. Na Lisboa do século XXI o cenário pode ser diferente, mas a essência fantasmagórica dos seus habitantes mantém-se. Há muito de ser-se português nisto de ser-se monstruoso. No fundo, há muito de ser-se humano. E é essa universalidade que garante elevação ao argumento. Já na terceira edição, o primeiro volume de As Incríveis Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy, numa edição impecável como outra coisa não seria de esperar da Tinta-da-China, revela-nos o submundo de uma cidade que vem sendo retratada, pelo menos desde Voltaire, com o espanto motivado pelas realidades sombrias, obscuras, tenebrosas. É famosa a luminosidade da capital portuguesa, associada a xailes negros e pregões colados ao destino. O fado pode não ser toda a nossa cultura, mas é, pelo menos, o berço onde os mortos nos embalam com seus nevoeiros de esperança. Filipe Melo, declarado adepto do cinema dito fantástico, fã de zombies e de criaturas aterradoras, concebeu nesta novela gráfica uma aventura cinematográfica com os ingredientes clássicos do fantástico. O elemento real, entre lobisomens, gárgulas, demónios e monstros de vária ordem, é um rapaz chamado Eurico (aka Pizzaboy) que trabalha numa pizzaria. A história limita-se a desenvolver, e de alguma forma prestar tributo, aos filmes de aventuras, não prescindindo de fortes e convincentes composições metafóricas de timbre humorístico (uma suposta lavandaria gigante nos esgotos da cidade não é mero entretenimento). Com os desenhos entregues ao talento do argentino Juan Cavia, também ele com experiência na arte do cinema, Filipe Melo propõe uma narrativa visual de contornos satíricos que transforma o imaginário monstruoso da ficção numa ingénua dimensão da criatividade ao pé da tenebrosa realidade arquitectada pelo nazismo na primeira metade do século XX. O terror perpetua-se na realidade, cabendo à imaginação livrar-nos do mal exorcizando os demónios em concepções que possam, de algum modo, equilibrar os dois pratos da balança. O segundo volume está aí, intitula-se As Extraordinárias Aventuras de Dog Mendonça e Pizzaboy II – Apocalipse. Do magma lançado pela História saltamos para a inesgotável fonte mística. Numa altura em que tanto se apregoa o fim do mundo, vem a calhar esta divertida antecipação dos acontecimentos. De novo juntos, o detective do oculto, o rapaz das pizzas, agora a trabalhar num Call Center, a inseparável companhia demoníaca do detective (tem algo de japonês nos traços) e a cabeça de uma gárgula garantindo os contrapontos humorísticos da tragédia. Neste volume, Filipe Melo e seus comparsas metem-se com a religião, invadem os marcos do transcendente e acabam por glosar a ficção de contornos esotéricos que vem fazendo as delícias de milhares de leitores nestes derradeiros anos da humanidade. Como não podia deixar de ser, decorrendo a acção em terras lusas, há uma deslocação a Fátima. Lado a lado, visões do Inferno, Papas desmaiados, Hitler, um cardeal abençoando as revelações do milagre. As pragas do Apocalipse estão em marcha, Abaddon desatará o nó do seu novo mundo na capital portuguesa. Nenhum humano nos pode salvar, estamos nas mãos dos monstros. Esta inclinação por monstros bem-humorados, heróicos e salvadores da pátria humana tem muito que se lhe diga, mas o melhor é pegar nos livros e folheá-los como quem vai ao cinema.
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