terça-feira, 1 de novembro de 2011

TERRENCE MALICK


A 1 de Novembro celebra-se o dia de Todos os Santos, celebra-se o martírio, o sacrifício, a entrega absoluta e incondicional. Celebro São Francisco de Assis, o mais cínico de todos os santos, atacado por uma loucura sublime, apedrejado na rua por criancinhas cruéis, filhas de seus pais, devoto da paz e da necessidade, inimigo feroz do superficial. Sobre este amor à pobreza, Leonardo Coimbra dita a sentença final: «Enquanto ele bebe a Vida na sua Fonte, os outros ignoram a Fonte e procuram esconder a morte, que é a essência da sua separatividade, sob os acidentes doirados das riquezas acessórias. A força da Pobreza é tanta que os próprios estóicos viram nela o método para caldear o aço da vontade para os grandes golpes do Destino». Mas antes dos estóicos, e ao contrário deles, já os cínicos, à maneira da velha tradição hinduísta, elogiavam a pobreza não enquanto meio, disciplina, mas enquanto libertação. E é de liberdade que falamos, não é de cemitérios marmóreos festejados com arranjos florais maquilhadores da putrefacção.

Enquanto os amantes dos mortos entopem as floristas, numa inglória antecipação do dia dos fiéis defuntos, eu revejo-me nas terras áridas onde Edward S. Curtis fotografou os últimos resquícios de uma cultura rica na pobreza franciscana da aceitação. Também os índios aceitavam a Natureza na sua evidente superioridade, não procuravam dominá-la em vão, sentiam-se parte integrante da mesma, sentiam-se, por isso, divinos na parte que lhes cabia do Grande Saber Universal. Não disfarçavam a morte, não a enganavam nem a fintavam com arranjos florais, celebravam-na com danças e cânticos solares, emitindo sons vibrantes inchados de um significado insignificante, enquanto os cavalos bebiam directamente dos rios uma água que era propriedade de todos e não de uma só Companhia.

Convertidas em reserva natural, as Badlands são hoje, também, um cemitério da vontade, terras onde o amor e a esperança são já tão-somente resquícios em pó de um tempo perdido. Não me falem de paraísos onde apenas sempre houve inferno. Quando chego a casa e penso nessas terras perdidas, de pernas e braços e mãos atados a uma cadeia de superficialidades, sinto-me eu próprio o morto que deve ser celebrado. E sobre a cabeça despejo as jarras de flores, fico a olhar-me ao espelho, com olhos de lunático, e acendo uma vela em memória de tudo o que não fui. Empurra-nos a existência para este fosso, empurra-nos e força-nos como uma fila de cegos na direcção do abismo, e quando acordamos é tarde de mais.

É sempre tarde de mais. Podemos ainda sacrificar-nos pelos outros, por um amor impossível, podemos sentir a terra sob os pés descalços e abrir as mãos à espuma das vagas, que nada mais será o mesmo. À nossa volta apenas uma luz obscura, alienante, um carrossel de alucinações e ilusões, tanta vida desperdiçada em horas, dias meses de uma entrega absurda a tudo o que não tem valor e nos explora, consome, oprime e impede. Porque é disso que se trata quando falamos de pobreza, é de uma liberdade que começa na recusa, na corajosa abdicação de um prometido conforto, na eliminação ou, pelo menos, na resistência firme aos paraísos artificiais, na demanda de um qualquer paraíso real. Se existe ou não, só poderemos sabê-lo se nos predispusermos a uma busca honesta e sincera. Passa talvez pelo arrependimento, por não nos convertermos naquilo que sempre odiamos, por sabermos reconhecer as opções erradas na via seguida ao longo dos anos, por ir ao encontro de um novo mundo: pacificador, porque libertador. Ao contrário, todos os dias serão dia de finados e o mais finado de todos será aquele que continuar a iludir a sua própria morte.

Estas paisagens atiram-me para o vazio, obrigam-me a reflectir a humidade dos olhos, mostram-me de um modo muito claro e evidente, quase cartesiano, o mistério da existência, um mistério sem mistério, tão claro e evidente como este estar aqui e agora com as terras áridas no pensamento, as más terras onde o pó cobre a pele das sombras. Árvores, dêem-me árvores, árvores gigantescas por entre as quais o sol se infiltre com seus raios de calor. Não quero pomares, nem jardins, quero florestas selvagens onde aves migratórias façam ocasionalmente o ninho e a Fonte adquira a consistência de uma raiz milenar. O martírio é estarmos vivos assim, como mortos, fazendo das ruas cemitérios e de cada casa um túmulo de memórias desperdiçadas.

7 comentários:

Graça Sampaio disse...

Eh pá! Que belo texto! Maravilha! Está mesmo muito bom. Que bem que você escreve - e pensa! É de filosofia ou é só inteligente?

Parabéns! Gosto muito de cá vir.

Anónimo disse...

Mais um excelente texto, poética de marca hmbf registada.

hmbf disse...

carol, sou inteligente na medida da minha estupidez. vá passando, gosto de a ver por cá.

Pedro Góis Nogueira disse...

Gostava que o meu comentário tivesse sido publicado. Numa de me dar ao trabalho de escrever um próximo. Não é por mais nada...

hmbf disse...

Pedro, a que comentário te referes? Terá falhado alguma coisa?

Pedro Góis Nogueira disse...

Ao que enviei mal foi publicado. Não foi a primeira vez. Se foi do Blogger também não foi a primeira vez.

Anónimo disse...

"Porque é disso que se trata quando falamos de pobreza, é de uma liberdade que começa na recusa, na corajosa abdicação de um prometido conforto, na eliminação ou, pelo menos, na resistência firme aos paraísos artificiais, na demanda de um qualquer paraíso real. Se existe ou não, só poderemos sabê-lo se nos predispusermos a uma busca honesta e sincera."

Acredito com toda a convicção que, com ideias como estas colocadas em prática diariamente, se consegue converter a realidade do sistema em que vivemos. Assim, transformando a vida numa luta verdadeira, é possível esmagar a indolente "luta" quotidiana de querer chegar a nenhuma parte.
Não há luta sem esforço, e o ideal seria que esse esforço se convertesse no alimento dessa luta.

...é verdade! belíssima fuga pelo portal da paisagem.Abraços