Em O Humor e a Lógica dos Objectos de Duchamp (Relógio d’Água, Maio de 2011) José Gil e Ana Godinho reúnem esforços no sentido de uma reflexão sobre a obra de Marcel Duchamp. Não fugindo à impossibilidade da interpretação, e limitados por essa característica intrínseca ao objecto em análise, concentram-se numa tentativa de penetrar uma eventual lógica criativa na excepcionalidade do trabalho levado a cabo pelo "inventor" do ready-made. O resultado é paradoxal, até porque qualquer livro que se escreva sobre este trabalho corre o risco de se transformar ele próprio num ready-made, ou seja, num transformador de energias desperdiçadas e inúteis. É importante termos em conta que, podendo ser pensada, a obra de Duchamp dispensa o pensamento, dispensa-se, inclusive, a si própria, não reclama absolutamente nada que não seja a afirmação de uma ruptura com o artístico e, nesse sentido, com a estética subjacente à justificação do artístico. A ênfase colocada no verbo respirar faz todo o sentido, na medida em que o material arquitectónico de Duchamp é, precisamente, a respiração, a respiração não apenas num sentido orgânico ou sensível, mas também, e talvez sobretudo, nesse sentido existencial marcado pela busca, pela viagem, pelo trânsito e pela transitoriedade, pela liberdade já não apenas como negação da tradição mas sim enquanto afirmação da vida. O trabalho de José Gil e Ana Godinho está organizado em três momentos. Um primeiro ensaio de José Gil focado naquilo a que poderíamos chamar o primeiro Duchamp, ou, adoptando a terminologia de Gil, um Duchamp antes de Duchamp. A matéria em análise são os cartoons produzidos para revistas no início da actividade. Gil apoia-se em Bergson para compreender o humor desses desenhos, um «humor do humor» (espirituoso) que nos inspira um sorriso mental não pela comicidade das situações ilustradas mas, precisamente, pelo distanciamento dessa comicidade. O que está em causa é a possibilidade do humor no imo da trivialidade: «o humor nasce do “vazio interno ao desenho”, do desfasamento entre um visível a captar e o que surge e não se lhe adequa – quer dizer, o humor nasce do que não surge. O humor é esse «acidente», um acontecimento que se revela não acontecer» (p. 26). Há neste sentido do humor uma projecção para o vazio que acabará por marcar toda a obra posterior de Marcel Duchamp: «os desenhos humorísticos de Duchamp supõem um desfasamento entre a figura e o texto, desfasamento que cria um vazio» (p. 36). Este desfasamento torna-se mais claro no ensaio de Ana Godinho, intitulado Duchamp hors-champ. Aí, a vida e a obra encontram-se e confundem-se, adquirem uma lógica que, no fundo, é a lógica da anomalia enquanto espinha dorsal do homem-criador. Ana Godinho fala do delírio enquanto processo, «o delírio entendido como deslocamento, passagem de “vida” “que atravessa o vivível e o vivido”» (p. 61). Este delírio é, à semelhança do que sucede com outros criadores, quer na literatura, quer nas mais variadas dimensões da criação humana, a porta para um espaço e um tempo indefiníveis, ocupados apenas pelo ar reclamado pela respiração enquanto acto criativo, digamos, supremo. É a magia que carece de explicação: «Duchamp faz escolhas «anómalas» de objectos, traçados, materiais, na sua vida mesmo. Afasta-se das convenções do seu tempo, «não seguindo a corrente daquela época», escolhe não ter vida pública, não ter posição moral, não ter objectivos sociais. Não escolhe uma «linha» de pintura, recusa os meios tradicionais, e escolhe muitas vezes o meio dos jogadores de xadrez («é muito mais simpático que o dos artistas») porque são cegos, confusos, loucos de certa natureza e também porque o xadrez fornece «uma faceta minúscula», mas «suficientemente diferente das outras para se tornar distinta» e alargar a sua «existência»» (p. 74). A transformação do olhar proposta por Duchamp, complexa nas suas variáveis filosóficas, é bastante simples no seu contexto mais existencial. No fundo, está em íntima relação com a respiração cínica dos antigos ou com um certo epicurismo menos submisso. Este livro fecha com os dois ensaístas em diálogo, um diálogo esclarecedor sobre as intenções de cada um dos ensaios anteriores. Não obstante, é igualmente revelador da dificuldade porventura insuperável que atravessa este tipo de ensaios: não estando certo de que o anómalo refuta a lógica, torna-se claro que uma lógica das anomalias pode ser um projecto estimulante quando aceita, à partida, o seu inevitável falhanço.
sábado, 31 de dezembro de 2011
O HUMOR E A LÓGICA DOS OBJECTOS DE DUCHAMP
Em O Humor e a Lógica dos Objectos de Duchamp (Relógio d’Água, Maio de 2011) José Gil e Ana Godinho reúnem esforços no sentido de uma reflexão sobre a obra de Marcel Duchamp. Não fugindo à impossibilidade da interpretação, e limitados por essa característica intrínseca ao objecto em análise, concentram-se numa tentativa de penetrar uma eventual lógica criativa na excepcionalidade do trabalho levado a cabo pelo "inventor" do ready-made. O resultado é paradoxal, até porque qualquer livro que se escreva sobre este trabalho corre o risco de se transformar ele próprio num ready-made, ou seja, num transformador de energias desperdiçadas e inúteis. É importante termos em conta que, podendo ser pensada, a obra de Duchamp dispensa o pensamento, dispensa-se, inclusive, a si própria, não reclama absolutamente nada que não seja a afirmação de uma ruptura com o artístico e, nesse sentido, com a estética subjacente à justificação do artístico. A ênfase colocada no verbo respirar faz todo o sentido, na medida em que o material arquitectónico de Duchamp é, precisamente, a respiração, a respiração não apenas num sentido orgânico ou sensível, mas também, e talvez sobretudo, nesse sentido existencial marcado pela busca, pela viagem, pelo trânsito e pela transitoriedade, pela liberdade já não apenas como negação da tradição mas sim enquanto afirmação da vida. O trabalho de José Gil e Ana Godinho está organizado em três momentos. Um primeiro ensaio de José Gil focado naquilo a que poderíamos chamar o primeiro Duchamp, ou, adoptando a terminologia de Gil, um Duchamp antes de Duchamp. A matéria em análise são os cartoons produzidos para revistas no início da actividade. Gil apoia-se em Bergson para compreender o humor desses desenhos, um «humor do humor» (espirituoso) que nos inspira um sorriso mental não pela comicidade das situações ilustradas mas, precisamente, pelo distanciamento dessa comicidade. O que está em causa é a possibilidade do humor no imo da trivialidade: «o humor nasce do “vazio interno ao desenho”, do desfasamento entre um visível a captar e o que surge e não se lhe adequa – quer dizer, o humor nasce do que não surge. O humor é esse «acidente», um acontecimento que se revela não acontecer» (p. 26). Há neste sentido do humor uma projecção para o vazio que acabará por marcar toda a obra posterior de Marcel Duchamp: «os desenhos humorísticos de Duchamp supõem um desfasamento entre a figura e o texto, desfasamento que cria um vazio» (p. 36). Este desfasamento torna-se mais claro no ensaio de Ana Godinho, intitulado Duchamp hors-champ. Aí, a vida e a obra encontram-se e confundem-se, adquirem uma lógica que, no fundo, é a lógica da anomalia enquanto espinha dorsal do homem-criador. Ana Godinho fala do delírio enquanto processo, «o delírio entendido como deslocamento, passagem de “vida” “que atravessa o vivível e o vivido”» (p. 61). Este delírio é, à semelhança do que sucede com outros criadores, quer na literatura, quer nas mais variadas dimensões da criação humana, a porta para um espaço e um tempo indefiníveis, ocupados apenas pelo ar reclamado pela respiração enquanto acto criativo, digamos, supremo. É a magia que carece de explicação: «Duchamp faz escolhas «anómalas» de objectos, traçados, materiais, na sua vida mesmo. Afasta-se das convenções do seu tempo, «não seguindo a corrente daquela época», escolhe não ter vida pública, não ter posição moral, não ter objectivos sociais. Não escolhe uma «linha» de pintura, recusa os meios tradicionais, e escolhe muitas vezes o meio dos jogadores de xadrez («é muito mais simpático que o dos artistas») porque são cegos, confusos, loucos de certa natureza e também porque o xadrez fornece «uma faceta minúscula», mas «suficientemente diferente das outras para se tornar distinta» e alargar a sua «existência»» (p. 74). A transformação do olhar proposta por Duchamp, complexa nas suas variáveis filosóficas, é bastante simples no seu contexto mais existencial. No fundo, está em íntima relação com a respiração cínica dos antigos ou com um certo epicurismo menos submisso. Este livro fecha com os dois ensaístas em diálogo, um diálogo esclarecedor sobre as intenções de cada um dos ensaios anteriores. Não obstante, é igualmente revelador da dificuldade porventura insuperável que atravessa este tipo de ensaios: não estando certo de que o anómalo refuta a lógica, torna-se claro que uma lógica das anomalias pode ser um projecto estimulante quando aceita, à partida, o seu inevitável falhanço.
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