segunda-feira, 2 de janeiro de 2012

COVA FUNDA



Alguns dos melhores versos publicados em Portugal durante o ano que passou encontram-se num volume intitulado Cova Funda (&etc., Julho de 2011), dramatização picaresca de uma marginalidade com toque clássico em contemporâneas situações. O título faz-se acompanhar de uma explicação bastante elucidativa: taverna exemplaríssima para os lados da antiga Porcalhota, de que o autor faz testemunho, com larga cópia de figuras, experiência de brancos & tintos, retirando do lugar ilação forte ao modo do século anterior; testemunho precedido de Unhacas & Calosidades Literárias e seguido de Levitação de Goetthe d’Amadora, crendo deste modo ter pé assente na História da Literatura do século seguinte. Ainda que o autor, Nunes da Rocha, insista em botar acento no cu, a dispersão de envios, citações e referências leva-nos a supor um observador participante neste universo de figuras/personagens desenhadas com divertida eloquência. Entre o castiço e a exclusão, numa linguagem erosiva e refractária, Nunes da Rocha consegue entreter o leitor sem perder a mão à poesia. A matriz é satírica e abjeccionista, eventualmente inspirada nas desconstruções do legado clássico operadas pelos surrealistas há já quase um século. Mas nada disto retira valor aos quadros populares que aqui e acolá nos assaltam com versos provocadores e envolventes. Exemplos: «toda a poesia é verdadeira, e somente se, / Todo o bestiário for doméstico» (p. 12); ou «Vê como as putas têm modos entre elas: / Umas fodem, outras exercem» (p. 25). Fica um poema:

SUECA

Havia quem falasse
Sobre o Grande Retrocesso que todos os dias
Nos liberta do futuro;

E quem sobre abjecção, vómito
E falta de ar, tivesse opinião;

Também um grego,
Cujo nome não recordo, dizia:
É o vinho que fala por mim;

E quem garantisse
Ser o Treze marido de Teresa.

Eram quatro, heterónimos todos,
À mesa da sueca que,
Como é sabido, é um jogo «calado»
.

Nunes da Rocha, in Cova Funda, &etc., Julho de 2011, p. 30.

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