domingo, 15 de janeiro de 2012

PEDRO E INÊS: DOLCE STIL NUOVO





Com sede em Águas Santas (concelho da Maia), por certo território extracomunitário, as Edições Sempre-Em-Pé vêm fazendo um trabalho meritório que continua a passar despercebido às vistas curtas dos cartógrafos dos “mapas em expansão da edição de poesia em Portugal”, mais não seja pela insistência na publicação de uma das melhores revistas de poesia e tradução editadas neste país. Chama-se DiVersos e vai em quinze números publicados, desde 1996. Como é óbvio, isto não interessa para nada, assim como não interessa para nada que a mesma editora tenha dado a conhecer um dos mais sólidos poetas portugueses da actualidade, com a arriscada edição do volume Dispersão – Poesia Reunida (Novembro de 2008), e tenha voltado a albergar os versos do mesmo autor com a impressão, no ano que passou, do livro Pedro e Inês: Dolce Stil Nuovo (Setembro de 2011). Pelo meio ficaram os títulos Londres e K3, ambos editados na &etc, respectivamente em Janeiro de 2010 e Janeiro de 2011. Em três anos, Nuno Dempster (Ponta Delgada, 1944) ajudou a baralhar as coordenadas da “nova” poesia portuguesa e impôs-se, por mérito próprio e sem parangonas, como uma voz única num meio onde a singularidade merece sempre a desconfiança redobrada dos membros da “comunidade”. O subtítulo deste livro não pode ser, pois, ingénuo, sendo possível ver nele alguma ironia que os versos do seu autor não enjeitam. É certo que Dempster vai buscar aos poetas italianos de outrora o gosto pelo decassílabo, sabendo, porém, que os aspectos formais na poesia de hoje são de relevância bastante discutível. Importará mais o ritmo imposto pela escolha das palavras e a sensibilidade no recorte dos versos (neste domínio, Dempster raramente perde o pé). Aqui e acolá poderíamos discordar de algumas opções, as quais não maculam minimamente o poder rítmico e a extrema sensibilidade colocada no tratamento da língua. No entanto, aquele Dolce Stil Nuovo associado à história de amor entre D. Pedro e D. Inês de Castro remete directamente para uma reconstrução do mito. Não é correcto falar-se em actualização, sendo preferível, talvez, aceitarmos as palavras do poeta e falarmos em transporte: «Transportemos do século XIV / a lenda de Pedro e Inês, para a filmarmos / na paisagem urbana deste século» (p. 35). Neste sentido, o poeta serve-se de um mito amoroso para desmistificar o sentimentalismo que contaminou, e persiste em contaminar, a lírica portuguesa. A preocupação, neste e noutros livros do mesmo autor, é a verdade, mas não a verdade num sentido absoluto, até porque essa não está às mãos de ninguém. O trabalho do poeta, aqui, é imaginar um mito passado num tempo presente, retratando assim o seu tempo e reflectindo a natureza da História: «A História só escreve equações, / da vida interior nada se lê» (p. 10). Há, por isso, um movimento paradoxal no método utilizado. A investigação levada a cabo parte de dúvidas intransponíveis sobre as suas próprias fontes, devendo por isso a verdade impor-se como uma construção onde operam diversos elementos por vezes antagónicos. O poema surge como uma espécie de fuga sempre resgatada, no final, pela inexorável realidade: rotina, trânsito, prédios, vizinhos, a vida vulgar. O resultado é esclarecedor: «Hoje vemos Inês cuidar das flores / do jardim, os seus três filhos na escola, / e fingimos que o príncipe D. Pedro / foi trabalhar no banco e volta à noite, / para jantar e logo adormecer / diante da TV, enquanto Inês / aconchega as crianças em seu sono / e a máquina ronrona e lava a louça. / Ainda não clareia, já D. Pedro / sai para a montaria que é o banco / e apanha o autocarro e o metro, / vítima de um destino tão vulgar. / Por isso, ninguém pode garantir / que Pedro seja a luz da própria lenda. / A luz só pode ser Inês, que deu / ao mundo os filhos de ambos e que segue, / serena, com as flores e com Pedro, / como ícone do mito, e permanece» (p. 28). Poesia culta, intensamente trabalhada, contida onde seria fácil resvalar, cuidadosa no tratamento dos vários elementos que a tornam, de facto, doce e nova quando comparada com a imensa maioria do que a “comunidade” foi dando à estampa nas últimas décadas.

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