Há muitas formas de entrar pela vida de um escritor adentro. Podemos centrar-nos na obra, analisá-la, tentar encontrar nela elementos que a liguem à vida vivida. Podemos ir ao encontro do escritor perseguindo-lhe o rasto, traçando-lhe os percursos, as manifestações públicas e o que nelas se esconde de relações íntimas. Podemos tentar penetrar na psicologia do escritor estabelecendo associações discutíveis, subjectivas, falando com quem conviveu com o escritor, com quem esteve perto do escritor, com quem o escritor partilhou confissões e cumplicidades. São múltiplas as formas de entrar pela vida de um escritor adentro, sendo certo que nenhuma delas, por si só, garante uma extrema coincidência entre a realidade e a imagem que venhamos a construir a partir de qualquer uma destas abordagens. Neste sentido, todas as biografias são trabalhos ingratos de reconstrução. Por mais extensas e profundas que possam ser, ficarão invariavelmente aquém da verdade, resultarão sempre num esforço de aproximação que não esgota os detalhes por detrás da personalidade do indivíduo. Nuno Costa Santos (n. 1974) optou por uma abordagem jornalística para a elaboração de Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco (Tinta-da-China, Janeiro de 2012), a biografia do poeta, jornalista e escritor Fernando Assis Pacheco (n. 1937 – m. 1995). Como o próprio indica em nota preliminar, pretendeu «contar as várias dimensões de Assis Pacheco num estilo cronístico, apostado em visitar algumas dimensões mais importantes de alguém que gramava andar por cá como poucos e que sabia que iria, com uma «saudade burra», dizer adeus a tudo isto» (p. 8). Este estilo cronístico, em tom pedido de empréstimo ao próprio biografado, revela-se em catorze textos focalizados, cada um deles, em dimensões diversas da vida do sujeito em causa. Deste modo, evita-se uma estrutura cronológica rígida, optando-se por misturar os tempos em função das dimensões tratadas. É verdade que começamos na infância, com um bebé gracejado pela atribuição do Iº Prémio da Farinha Lacto-Búlgara, e prosseguimos pela adolescência, mas a partir do momento em que entramos na vida adulta a cronologia deixa de ter uma relevância determinística, optando-se antes por desenhar, com depoimentos respigados nas pessoas certas e versos roubados à obra poética, facetas tão díspares como as do homem-militar, do homem-poeta, do homem-jornalista, do homem-de-família, do homem-estrela-de-televisão, do homem-amante, do homem-amigo, etc.. Nenhuma das facetas acaba sobrevalorizada relativamente às demais, notando-se o esforço do biógrafo nesse sentido. A tentação maior, neste caso, talvez fosse a de promover o grande poeta que Fernando Assis Pacheco foi. Nuno Costa Santos evita-o, disseminando a poesia por todos os momentos e em variadíssimos contextos, mas sem descurar aquilo que, afinal, sempre esteve na origem dos poemas: a experiência vivida, o quotidiano. Ficamos assim a saber de uma criança prodígio que «com seis, sete anos, planeou e redigiu o jornal O Micróbio» (p. 19), do leitor tão compulsivo quanto aluno mediano, do homem apaixonado que se pôs a caminho de Londres para estar mais perto do seu amor, do militar frustrado, traumatizado, que «esteve para ficar no mato duas vezes porque caía, com medo, e desmaiava» (p. 47), do jornalista que criou um estilo novo ao cultivar os humores da gente comum, do pai extremoso e, em certa medida, paranóico, do poeta autovigilante, modesto, mas orgulhoso, de estilo despretensioso e sem galas, do homem de afectos que fazia questão de celebrar amizades e cumplicidades. Nuno Costa Santos reservou ainda algumas páginas para os lugares predilectos do autor, para uma aproximação às raízes galegas, consumadas no romance Trabalhos e Paixões de Benito Prada (1979), e para aqueles que foram os grandes prazeres de uma vida, ao que parece, que fez questão de perder a timidez sempre que se tratava de ser feliz, mesmo quando por detrás das cortinas da felicidade podia esconder-se, à espreita, a depravada melancolia. Assim nos é contada a vida de Fernando Assis Pacheco, em prosa escorreita e também ela despretensiosa, num trabalho que tem o mérito evidente de voltar a lembrar um dos grandes poetas deste país.
domingo, 29 de janeiro de 2012
TRABALHOS E PAIXÕES DE FERNANDO ASSIS PACHECO
Há muitas formas de entrar pela vida de um escritor adentro. Podemos centrar-nos na obra, analisá-la, tentar encontrar nela elementos que a liguem à vida vivida. Podemos ir ao encontro do escritor perseguindo-lhe o rasto, traçando-lhe os percursos, as manifestações públicas e o que nelas se esconde de relações íntimas. Podemos tentar penetrar na psicologia do escritor estabelecendo associações discutíveis, subjectivas, falando com quem conviveu com o escritor, com quem esteve perto do escritor, com quem o escritor partilhou confissões e cumplicidades. São múltiplas as formas de entrar pela vida de um escritor adentro, sendo certo que nenhuma delas, por si só, garante uma extrema coincidência entre a realidade e a imagem que venhamos a construir a partir de qualquer uma destas abordagens. Neste sentido, todas as biografias são trabalhos ingratos de reconstrução. Por mais extensas e profundas que possam ser, ficarão invariavelmente aquém da verdade, resultarão sempre num esforço de aproximação que não esgota os detalhes por detrás da personalidade do indivíduo. Nuno Costa Santos (n. 1974) optou por uma abordagem jornalística para a elaboração de Trabalhos e Paixões de Fernando Assis Pacheco (Tinta-da-China, Janeiro de 2012), a biografia do poeta, jornalista e escritor Fernando Assis Pacheco (n. 1937 – m. 1995). Como o próprio indica em nota preliminar, pretendeu «contar as várias dimensões de Assis Pacheco num estilo cronístico, apostado em visitar algumas dimensões mais importantes de alguém que gramava andar por cá como poucos e que sabia que iria, com uma «saudade burra», dizer adeus a tudo isto» (p. 8). Este estilo cronístico, em tom pedido de empréstimo ao próprio biografado, revela-se em catorze textos focalizados, cada um deles, em dimensões diversas da vida do sujeito em causa. Deste modo, evita-se uma estrutura cronológica rígida, optando-se por misturar os tempos em função das dimensões tratadas. É verdade que começamos na infância, com um bebé gracejado pela atribuição do Iº Prémio da Farinha Lacto-Búlgara, e prosseguimos pela adolescência, mas a partir do momento em que entramos na vida adulta a cronologia deixa de ter uma relevância determinística, optando-se antes por desenhar, com depoimentos respigados nas pessoas certas e versos roubados à obra poética, facetas tão díspares como as do homem-militar, do homem-poeta, do homem-jornalista, do homem-de-família, do homem-estrela-de-televisão, do homem-amante, do homem-amigo, etc.. Nenhuma das facetas acaba sobrevalorizada relativamente às demais, notando-se o esforço do biógrafo nesse sentido. A tentação maior, neste caso, talvez fosse a de promover o grande poeta que Fernando Assis Pacheco foi. Nuno Costa Santos evita-o, disseminando a poesia por todos os momentos e em variadíssimos contextos, mas sem descurar aquilo que, afinal, sempre esteve na origem dos poemas: a experiência vivida, o quotidiano. Ficamos assim a saber de uma criança prodígio que «com seis, sete anos, planeou e redigiu o jornal O Micróbio» (p. 19), do leitor tão compulsivo quanto aluno mediano, do homem apaixonado que se pôs a caminho de Londres para estar mais perto do seu amor, do militar frustrado, traumatizado, que «esteve para ficar no mato duas vezes porque caía, com medo, e desmaiava» (p. 47), do jornalista que criou um estilo novo ao cultivar os humores da gente comum, do pai extremoso e, em certa medida, paranóico, do poeta autovigilante, modesto, mas orgulhoso, de estilo despretensioso e sem galas, do homem de afectos que fazia questão de celebrar amizades e cumplicidades. Nuno Costa Santos reservou ainda algumas páginas para os lugares predilectos do autor, para uma aproximação às raízes galegas, consumadas no romance Trabalhos e Paixões de Benito Prada (1979), e para aqueles que foram os grandes prazeres de uma vida, ao que parece, que fez questão de perder a timidez sempre que se tratava de ser feliz, mesmo quando por detrás das cortinas da felicidade podia esconder-se, à espreita, a depravada melancolia. Assim nos é contada a vida de Fernando Assis Pacheco, em prosa escorreita e também ela despretensiosa, num trabalho que tem o mérito evidente de voltar a lembrar um dos grandes poetas deste país.
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