terça-feira, 24 de janeiro de 2012

UTOPIA

Camarada Van Zeller, dou por mim a acreditar na utopia e suas tão raras virtudes. É preciso reanimá-la, se preciso for trazer Tomas Morus em versão de bolso nos anoraques cinzentos deste seco Inverno. É preciso reaprender a semântica do pusilânime nobre, para dar cabo dela antes que ela dê cabo de nós. Por menos que corninhos dissimulados puseram-se a andar ministros, um Presidente insulta toda uma nação e logo aparecem embaixadores do desagravo. Nenhum Ulisses nos salvará em tão desembarcada viagem. As bússolas estão todas sintonizadas numa mesma direcção, entre norte e sul nem uma nesga de raiva permite distinguir a tépida indignação generalizada da generalizada indignação inconsequente.

Os poetas vão à missa quais escuteiros, reúnem-se em retiro, de mãos dadas, a cantar o kumbayah. É tudo belo e maravilhoso enquanto formos anjos do senhor numa anódina e acrítica, pelo menos tanto quanto acéfala, irmandade. Ó pichas moles, ó traída tusa da pátria consumada. Merecemos descanso de tanto tédio. Por todas as ruas, por todas as vielas, por todas as avenidas, manifestações de vergonha sem efeito. Fazem-se petições, compartilham-se cenas tristes, distribuem-se likes e links como quem semeia inoperância, por todo o lado textos saturados de prejuízo, nenhum acto, nenhum gesto para lá da frente amuralhada deste desconforto que é viver postergado pelos chefes da nação.

Só uma explicação existe para o pântano: nas urnas reelegem-se vigaristas, crápulas, tontos, ladrões para podermos continuar a ter alvos à altura do malogro. É puro masoquismo, é puro masoquismo. E a gente, sem querer, corrobora a promoção dos inúteis enquanto abrimos portas já abertas. Dou por mim a acreditar na utopia e suas tão raras virtudes, sou pelas soluções violentas. Em vez de petições matizadas pela parvoeira generalizada, em vez dessas quimeras irrisórias, em vez de tardes inteiras a compartilhar opiniões sem vento nem tempestade, em vez de curtes e menosprezáveis simpatias sociais, proponho soluções violentas.

Não paguemos a água nem a luz, apaguemos os quadros eléctricos, reduzamos ao máximo possível todo o consumo, entreguemos já amanhã todas as boxes, devolvamos o MEO ao MEO, destruamos as televisões, recusemos. Compensemos o mérito com o mérito, incendiemos nas nossas varandas as bíblias do Estado, livros de recibos verdes, declarações electrónicas, seguros, ASAE, sujeitemo-nos à multa generalizada, abramos a porta aos cobradores e aos cobardes e sentemo-nos com eles, à lareira, a beber chá e a declamar poemas. Permaneçamos em casa, abandonemos os postos de trabalho às mãos dos nossos patrões, eles que limpem as estantes, aspirem as alcatifas, eles que carreguem aos ombros o trabalho miseravelmente pago que nos leva o tempo, a família, os amigos, a vida. A Celeste que mude as fraldas ao Eduardo.

Uma moeda para o Presidente não basta, é preciso construir-lhe uma arca com A Utopia bordada nas velas, lançá-lo ao mar e deixá-lo à deriva com suas invioláveis convicções. É preciso encontrar saída para a raiva. Vomitá-la em prosa sem estouro não chega. Amanhã já ninguém se lembrará de que hoje existimos e fomos agredidos pela existência, amanhã o esquecimento fará o seu trabalho ao dobrar da esquina, pois que chegados às avenidas do pensamento é tanto o ruído, são tantos os casos, é tanta a contra-informação que já nenhuma paciência restará para abrir os olhos antes de atravessar a estrada. E quando menos dermos por isso, seremos atropelados sem sequer termos pisado a terra da Utopia.

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