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Em momentos de aflição, alguns povos apelam aos antepassados evocando vozes há muito adormecidas sob o mármore. Olho as fotografias a preto e branco incrustadas na lápide e pouco mais encontro do que uma infinita distância. Ainda que me recorde de ter percorrido certos troços montado num burro, ainda que mantenha debaixo da língua o gosto da primeira lata de atum, partilhada à sombra de uma oliveira, ainda que lembre vagamente a marcha dos homens dentro do lagar, já tudo me chega pelos ínvios caminhos da memória. E não sei o que de verdade ou mito há em cada um dos fragmentos que sobreviveu ao eterno esquecimento.
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Mais facilmente me comovem monumentos erguidos em memória de anónimos fogueteiros, gente humilde que provavelmente nunca sonhou vir a merecer o nome cravado numa pedra. Ao lado do nome, uma recriação em ferro de um foguete. Singela e algo tosca, simboliza o instrumento que pôs a dançar de espanto, durante décadas, gerações inteiras de peregrinos. Não foram poucas as alegrias que engoli pelos olhos, quando em pequeno ficava a olhar no céu a música que rebentava numa chuva multicolorida. Agora espanta-me apenas que ainda exista quem se preocupe com a direcção que toma o vento.
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Aproveito os ensinamentos e persigo-o por entre matas despidas. Estamos no Inverno, o mais que podemos é deixar cair sobre nós o sol frio dos campos. É uma luz tépida que transforma o céu inteiro numa fotografia em sépia, e a Terra o mármore sobre o qual nos vamos mantendo falsamente acordados. Não há nenhum romantismo nestas folhas caídas, nem sequer a melancolia das depressões frontais, apenas um enorme desprezo por tudo quanto é humano e moderno, da alegria com hora marcada ao amor calendarizado, passando por essa benevolência sazonal representada em presépios de plástico e inodoros pinheiros.
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Resta-nos o cozido à portuguesa, a sesta depois da refeição, um saco de laranjas oferecido por um amigo de passagem. Resta-nos a sabedoria dos cínicos antigos contra a ignorância e a hipocrisia dos tudólogos contemporâneos, também eles convertidos ao vírus inexorável do humor, da graça, da piada anódina e inócua. Resta-nos saber que apesar das mutações genéticas sofridas ao longo dos tempos, continuam as raízes nesse lugar sem nome onde o sono encontra o mito. E aí chegados mais não podemos, todos sem excepção, do que sentir uma incurável vergonha de nós próprios, por termos falhado a rota que nos traria um pouco de paz e de sossego antes de chegarmos onde agora estão os nossos antepassados.
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