quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

RAIZ


Em momentos de aflição, alguns povos apelam aos antepassados evocando vozes há muito adormecidas sob o mármore. Olho as fotografias a preto e branco incrustadas na lápide e pouco mais encontro do que uma infinita distância. Ainda que me recorde de ter percorrido certos troços montado num burro, ainda que mantenha debaixo da língua o gosto da primeira lata de atum, partilhada à sombra de uma oliveira, ainda que lembre vagamente a marcha dos homens dentro do lagar, já tudo me chega pelos ínvios caminhos da memória. E não sei o que de verdade ou mito há em cada um dos fragmentos que sobreviveu ao eterno esquecimento.

Mais facilmente me comovem monumentos erguidos em memória de anónimos fogueteiros, gente humilde que provavelmente nunca sonhou vir a merecer o nome cravado numa pedra. Ao lado do nome, uma recriação em ferro de um foguete. Singela e algo tosca, simboliza o instrumento que pôs a dançar de espanto, durante décadas, gerações inteiras de peregrinos. Não foram poucas as alegrias que engoli pelos olhos, quando em pequeno ficava a olhar no céu a música que rebentava numa chuva multicolorida. Agora espanta-me apenas que ainda exista quem se preocupe com a direcção que toma o vento.

Aproveito os ensinamentos e persigo-o por entre matas despidas. Estamos no Inverno, o mais que podemos é deixar cair sobre nós o sol frio dos campos. É uma luz tépida que transforma o céu inteiro numa fotografia em sépia, e a Terra o mármore sobre o qual nos vamos mantendo falsamente acordados. Não há nenhum romantismo nestas folhas caídas, nem sequer a melancolia das depressões frontais, apenas um enorme desprezo por tudo quanto é humano e moderno, da alegria com hora marcada ao amor calendarizado, passando por essa benevolência sazonal representada em presépios de plástico e inodoros pinheiros.

Resta-nos o cozido à portuguesa, a sesta depois da refeição, um saco de laranjas oferecido por um amigo de passagem. Resta-nos a sabedoria dos cínicos antigos contra a ignorância e a hipocrisia dos tudólogos contemporâneos, também eles convertidos ao vírus inexorável do humor, da graça, da piada anódina e inócua. Resta-nos saber que apesar das mutações genéticas sofridas ao longo dos tempos, continuam as raízes nesse lugar sem nome onde o sono encontra o mito. E aí chegados mais não podemos, todos sem excepção, do que sentir uma incurável vergonha de nós próprios, por termos falhado a rota que nos traria um pouco de paz e de sossego antes de chegarmos onde agora estão os nossos antepassados.

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