sexta-feira, 30 de março de 2012

AS JUNÇÕES





Há imagens que nos afectam de tal maneira que as gravamos na memória com uma intensidade inexplicável, basta um pormenor para que as retomemos em associação com outras imagens. Por exemplo, sempre que vejo tranças lembro-me de uma cena do filme Alexandra (2007), de Sokurov, em que um neto arranja o cabelo à avó que o visitara no aquartelamento onde se encontrava em missão. Ao olhar para o desenho reproduzido na capa deste livro de Hugo Milhanas Machado (n. 1984) foi dessa cena que me lembrei, da sua luz atravessada por finas camadas de pó, do movimento quase mecânico, mas afectuoso, com que um homem possante arruma os cabelos de uma velha. Trata-se de um gesto rotineiro em que a geometria é respeitada na demanda da beleza, um pouco como acontece com os poetas quando escrevem poemas e organizam livros. Não mais fazem do que tranças os poetas que organizam os seus poemas em livros.

As Junções (Artefacto, s/d) é, deste modo, um título muito feliz. Reúne três conjuntos de versos escritos entre 2008 e 2010, entrançados cronológica e tematicamente. Porém, resultam num todo harmonioso. O primeiro conjunto, intitulado As Montanhas Mágicas (2008), foi premiado com o Prémio José Luís Peixoto atribuído pela Câmara Municipal de Ponte de Sor. Nada que abone muito em seu favor, reconheça-se, mas logo ao primeiro poema reencontramos a palavra trança, desta feita em sintonia com o Tour de França, e não podemos deixar de ficar atraídos. As montanhas do título são as que podemos ver na Volta à França, conquistadas pelo esforço heróico dos ciclistas. Eis outra palavra que nos confunde os caminhos, agora atirando-nos para cima de um poema de Herberto Helder: «Lá vai a bicicleta do poeta em direcção / ao símbolo, por um dia de verão / exemplar». E que bem rima com este poema toda a poesia de Hugo Milhanas Machado. A segunda pessoa a que se declara entre vigoroso ambiente é dúbia, mas a sua essência metafórica permite-nos pedalar pela imaginação adentro. E com ela fazermos o que bem entendermos. Por mim, descanso os olhos/os músculos, na excelência da paisagem:

MONT VENTOUX

Adivinhas tu que entre tanta gente aqui na montanha
o amor que te tenho às tantas é tanto meu e teu
que to roubei como desta tanta e ainda ontem outra gente
esta gente que põe o coração no pedalar dos atletas?

O amor que te tenho às tranças às tantas confundo-o
com o serpentear das bicicletas rampa acima
quando as vemos pequeninas lá em baixo
e aqui passam em esforço os atletas e pedem água

E quando na curva ali em cima desaparecem
mas nem a metáfora ajuda que por aqui não há árvores

Vão mesmo lançados ainda que mortos derreados
amá-los é amar-te mais um pedaço
eu e toda esta gente aqui de coração na estrada


O que este poema também pode introduzir para os conjuntos subsequentes é característico de uma voz que tem vindo a saber-se afirmar pela ousadia no tratamento sintáctico dos versos. Longe da linearidade gramatical da maioria dos seus contemporâneos, Hugo Milhanas Machado só encontra par numa Margarida Vale de Gato. Estrelas Partidas (2010), o mais dispersivo dos conjuntos aqui reunidos, oferece-nos vários indícios de um trabalho gramatical que está mais preocupado com a respiração dos vocábulos do que com a musicalidade dos versos. Daí as dissonâncias, uma espécie de arritmia que estilhaça a sintaxe e obriga o leitor a encontrar a respiração própria das palavras. Não é propriamente difícil vislumbrar sentido(s) nestes poemas, chegando mesmo, por vezes, a parecer ligeiros e quase invariavelmente luminosos. O que eles fazem é desafiar-nos a respiração:

ESTRELAS PARTIDAS

Vou esperar as estrelas partidas
ver como se te apagam nos dedos
ver da luz se chega se está bem
e depois então és tu

É que agora que largas a voar
e vais ver diferente de todos nós
eu posso sabes se calhar esquecer

Mas dás asas com tanta força tu
os dedos são tão longos e escuros
passando nos meios a sobra

As estrelas partidas arranjadas no ar
ver horizontal e extremadamente
tudo assim disposto e memorável


No último conjunto — Os Meses Agora São Uma Merda (2009) —, escrito para ser «lido em recital», estes aspectos chegam a extremar-se. Devendo ser interpretado como um longo poema, esta ode ao movimento é, muito provavelmente, das melhores coisas que se escreveram em Portugal nos últimos anos. As palavras assumem aqui uma importância fulcral, vão sendo lançadas como pistas num emaranhado de imagens onde percebemos um ambiente típico de época balnear. Resulta impressionante a forma como a anomalia é integrada sem esforço, deixando, assim, de ser anómala, passando a ser um terreno fértil onde a linguagem rebenta e dá os seus frutos. É um poema sobre o que ficou para trás (sol, praia, mar, alegria, marinheiros, cor, cervejas, beijos, etc.), reflectindo uma alegria encalhada na tristeza da perda. Não obstante a nostalgia que paira sobre os versos, o tom geral recusa o anúncio da catástrofe: «estão as imagens todas partidas / não tens mais que apanhar do chão / e atirar ao meio do mar / que as vozes levantam e vão com elas» (p. 69). Faz muito bem o poeta em deixar a memória contaminar-se pela alegria das experiências passadas, mesmo que “os meses agora sejam uma merda”. Assim a ruína ganha asas e deixa de ser o pastiche enjoativo e disfarçado que o António Guerreiro tanto gosta de elogiar nas páginas do Atual.

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