Basta atentarmo-nos a esse teatro hipócrita da realpolitik, que obriga a apertos de mão entre líderes democraticamente eleitos (defensores de direitos humanos supostamente universais) e tiranos perpetrados no poder pela força das armas (responsáveis pelas mais cruéis violentações da dignidade humana), para aceitarmos como pertinente e até desejável uma nova teoria do mal. Temos, então, um ensaio organizado sob a forma de tratado, nem fragmentário, nem aforístico, onde uma série de deduções agrupadas por temáticas ajudam a reflectir o problema do mal, arriscam previsões e propõem novos paradigmas de pensamento. O autor parte de uma distinção entre corpo, mente e espírito, fundamentada em teses algo simplistas da antropologia filosófica, para concluir que «o mal, contemporâneo da evolução do homem, é, assim, anterior ao bem, que se desenvolve biológica e socialmente contra ele» (p. 37). Esta contextualização cronológica do problema não é inocente. A partir do momento em que aceitamos a primazia do mal relativamente ao bem, vemo-nos obrigados a questionar a própria natureza humana. É isso que Real faz, afirmando o mal enquanto «essência do mundo» e sintetizando parte das suas teses em três parágrafos que convém citar na íntegra:
«3.8. O mal existe, é universal e não pode ser eliminado. As intensidades do mal são variáveis e o seu grau de afectação (as consequências) relativo. A sua existência, porém, é absoluta.
3.9. Neste sentido, o homem é por natureza mau, como todos os seres vivos, dominado pelos desejos ou pulsões de posse e domínio, expressão analógica da adaptação biológica nos restantes seres vivos.
3.10. A humanidade do homem reside na capacidade de fazer o bem, diminuindo, controlando ou evitando o mal. A morte é absoluta, universal e substancial; aumentar a esperança média de vida dos povos e das pessoas é um acto bom» (p. 112, sublinhados nossos)
Abandonado o paradigma judaico-cristão de um Deus supremamente bom, criador de todas as cosias, um Deus, segundo Miguel Real, moribundo e em franca decadência, suporte de religiões às quais devemos «orgias de sangue» e a banalização do mal, parece querer perpetuar-se nesta tese a ideia do homem enquanto hóspede do mal. No entanto, não é bem assim. Porque ser mau por natureza não é o mesmo que ter sido contaminado, através de forças obscuras ou pela degenerescência social, pelo vírus do mal. Reconhecer o mal na natureza humana é admitir um princípio cuja validade é tão improvável/discutível quanto a proposição inversa, ou seja, afirmar que o homem é por natureza mau vale tanto quanto afirmar que ele é por natureza bom. Isto é, vale pouco. E o que fica por explicar é como podemos atribuir à natureza do homem uma categoria que está única e exclusivamente dependente da sua capacidade de avaliar a realidade. Miguel Real não o faz, essa é a sua grande lacuna. Será aceitável a pressuposição de que naturalmente os seres possam ser algo que resulta unicamente de uma abstracção do pensamento humano?
Nem boa, nem má, a Natureza talvez simplesmente seja. O que a tornará boa ou má será a consciência do outro, não apenas motivada pelo “instinto de rebanho” (Nietzsche), mas muito mais na base de uma percepção do direito à afirmação individual. O resto caberá à Política que, como afirma o autor desta Nova Teoria, «é a ciência, não de fazer o bem, mas de evitar, prevenir ou minimizar o mal» (p. 181). Ensina-nos a História que de boas intenções está o Inferno cheio e de tanto pretenderem fazer o bem Estados diversos chacinaram milhões com suas políticas de bondade, instaurando a barbárie, regrando o caos, atribuíndo à crueldade uma lógica éticamente insuportável. Neste sentido, o livro de Miguel Real é um interessante apelo à reflexão, uma reflexão que nos ajuda a libertar mais um pouco daquilo a que o próprio chama um «estado de infantilidade e barbárie» da humanidade. Dito de outro modo, a darmos um passo na direcção de um estado expurgado do “indiferentismo, passividade ou permissividade” que vão justificando no Poder uma oligarquia de tecnocratas «totalmente desacompanhados de uma dimensão cultural e espiritual para a sociedade» (p. 19).
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