Miguel Real (n. 1953) confessa que este livro teve na sua origem «a revolta moral contra o estado de vida degradado, autenticamente terceiro-mundista, de mais de 2 milhões de habitantes de Portugal» (p. 12). Sem pretender questionar a legitimidade da comparação, parece-me algo exagerado trazer o chamado Terceiro Mundo (categoria quotidianamente deturpada do seu sentido original) à realidade portuguesa. Seja como for, o ambiente vivido por terras lusas vai sendo propício a este género de comparações. E aquilo que o título Nova Teoria do Mal (Fevereiro de 2012) sugere podia muito bem fundamentar-se nesse ambiente, directamente relacionado com a degradação do modo de vida de milhões de cidadãos nas democracias ocidentais, ou numa outra qualquer realidade internacional: quer na emergência de novas potências económicas à custa de uma escravatura disfarçada de capacidade de consumo, quer na globalização do capitalismo selvagem, quer no agravamento das assimetrias que vão tornando uma ínfima parte da população mundial cada vez mais rica e uma imensa maioria tendencialmente mais miserável.
Basta atentarmo-nos a esse teatro hipócrita da realpolitik, que obriga a apertos de mão entre líderes democraticamente eleitos (defensores de direitos humanos supostamente universais) e tiranos perpetrados no poder pela força das armas (responsáveis pelas mais cruéis violentações da dignidade humana), para aceitarmos como pertinente e até desejável uma nova teoria do mal. Temos, então, um ensaio organizado sob a forma de tratado, nem fragmentário, nem aforístico, onde uma série de deduções agrupadas por temáticas ajudam a reflectir o problema do mal, arriscam previsões e propõem novos paradigmas de pensamento. O autor parte de uma distinção entre corpo, mente e espírito, fundamentada em teses algo simplistas da antropologia filosófica, para concluir que «o mal, contemporâneo da evolução do homem, é, assim, anterior ao bem, que se desenvolve biológica e socialmente contra ele» (p. 37). Esta contextualização cronológica do problema não é inocente. A partir do momento em que aceitamos a primazia do mal relativamente ao bem, vemo-nos obrigados a questionar a própria natureza humana. É isso que Real faz, afirmando o mal enquanto «essência do mundo» e sintetizando parte das suas teses em três parágrafos que convém citar na íntegra:
«3.8. O mal existe, é universal e não pode ser eliminado. As intensidades do mal são variáveis e o seu grau de afectação (as consequências) relativo. A sua existência, porém, é absoluta.
3.9. Neste sentido, o homem é por natureza mau, como todos os seres vivos, dominado pelos desejos ou pulsões de posse e domínio, expressão analógica da adaptação biológica nos restantes seres vivos.
3.10. A humanidade do homem reside na capacidade de fazer o bem, diminuindo, controlando ou evitando o mal. A morte é absoluta, universal e substancial; aumentar a esperança média de vida dos povos e das pessoas é um acto bom» (p. 112, sublinhados nossos)
Abandonado o paradigma judaico-cristão de um Deus supremamente bom, criador de todas as cosias, um Deus, segundo Miguel Real, moribundo e em franca decadência, suporte de religiões às quais devemos «orgias de sangue» e a banalização do mal, parece querer perpetuar-se nesta tese a ideia do homem enquanto hóspede do mal. No entanto, não é bem assim. Porque ser mau por natureza não é o mesmo que ter sido contaminado, através de forças obscuras ou pela degenerescência social, pelo vírus do mal. Reconhecer o mal na natureza humana é admitir um princípio cuja validade é tão improvável/discutível quanto a proposição inversa, ou seja, afirmar que o homem é por natureza mau vale tanto quanto afirmar que ele é por natureza bom. Isto é, vale pouco. E o que fica por explicar é como podemos atribuir à natureza do homem uma categoria que está única e exclusivamente dependente da sua capacidade de avaliar a realidade. Miguel Real não o faz, essa é a sua grande lacuna. Será aceitável a pressuposição de que naturalmente os seres possam ser algo que resulta unicamente de uma abstracção do pensamento humano?
Nem boa, nem má, a Natureza talvez simplesmente seja. O que a tornará boa ou má será a consciência do outro, não apenas motivada pelo “instinto de rebanho” (Nietzsche), mas muito mais na base de uma percepção do direito à afirmação individual. O resto caberá à Política que, como afirma o autor desta Nova Teoria, «é a ciência, não de fazer o bem, mas de evitar, prevenir ou minimizar o mal» (p. 181). Ensina-nos a História que de boas intenções está o Inferno cheio e de tanto pretenderem fazer o bem Estados diversos chacinaram milhões com suas políticas de bondade, instaurando a barbárie, regrando o caos, atribuíndo à crueldade uma lógica éticamente insuportável. Neste sentido, o livro de Miguel Real é um interessante apelo à reflexão, uma reflexão que nos ajuda a libertar mais um pouco daquilo a que o próprio chama um «estado de infantilidade e barbárie» da humanidade. Dito de outro modo, a darmos um passo na direcção de um estado expurgado do “indiferentismo, passividade ou permissividade” que vão justificando no Poder uma oligarquia de tecnocratas «totalmente desacompanhados de uma dimensão cultural e espiritual para a sociedade» (p. 19).
Basta atentarmo-nos a esse teatro hipócrita da realpolitik, que obriga a apertos de mão entre líderes democraticamente eleitos (defensores de direitos humanos supostamente universais) e tiranos perpetrados no poder pela força das armas (responsáveis pelas mais cruéis violentações da dignidade humana), para aceitarmos como pertinente e até desejável uma nova teoria do mal. Temos, então, um ensaio organizado sob a forma de tratado, nem fragmentário, nem aforístico, onde uma série de deduções agrupadas por temáticas ajudam a reflectir o problema do mal, arriscam previsões e propõem novos paradigmas de pensamento. O autor parte de uma distinção entre corpo, mente e espírito, fundamentada em teses algo simplistas da antropologia filosófica, para concluir que «o mal, contemporâneo da evolução do homem, é, assim, anterior ao bem, que se desenvolve biológica e socialmente contra ele» (p. 37). Esta contextualização cronológica do problema não é inocente. A partir do momento em que aceitamos a primazia do mal relativamente ao bem, vemo-nos obrigados a questionar a própria natureza humana. É isso que Real faz, afirmando o mal enquanto «essência do mundo» e sintetizando parte das suas teses em três parágrafos que convém citar na íntegra:
«3.8. O mal existe, é universal e não pode ser eliminado. As intensidades do mal são variáveis e o seu grau de afectação (as consequências) relativo. A sua existência, porém, é absoluta.
3.9. Neste sentido, o homem é por natureza mau, como todos os seres vivos, dominado pelos desejos ou pulsões de posse e domínio, expressão analógica da adaptação biológica nos restantes seres vivos.
3.10. A humanidade do homem reside na capacidade de fazer o bem, diminuindo, controlando ou evitando o mal. A morte é absoluta, universal e substancial; aumentar a esperança média de vida dos povos e das pessoas é um acto bom» (p. 112, sublinhados nossos)
Abandonado o paradigma judaico-cristão de um Deus supremamente bom, criador de todas as cosias, um Deus, segundo Miguel Real, moribundo e em franca decadência, suporte de religiões às quais devemos «orgias de sangue» e a banalização do mal, parece querer perpetuar-se nesta tese a ideia do homem enquanto hóspede do mal. No entanto, não é bem assim. Porque ser mau por natureza não é o mesmo que ter sido contaminado, através de forças obscuras ou pela degenerescência social, pelo vírus do mal. Reconhecer o mal na natureza humana é admitir um princípio cuja validade é tão improvável/discutível quanto a proposição inversa, ou seja, afirmar que o homem é por natureza mau vale tanto quanto afirmar que ele é por natureza bom. Isto é, vale pouco. E o que fica por explicar é como podemos atribuir à natureza do homem uma categoria que está única e exclusivamente dependente da sua capacidade de avaliar a realidade. Miguel Real não o faz, essa é a sua grande lacuna. Será aceitável a pressuposição de que naturalmente os seres possam ser algo que resulta unicamente de uma abstracção do pensamento humano?
Nem boa, nem má, a Natureza talvez simplesmente seja. O que a tornará boa ou má será a consciência do outro, não apenas motivada pelo “instinto de rebanho” (Nietzsche), mas muito mais na base de uma percepção do direito à afirmação individual. O resto caberá à Política que, como afirma o autor desta Nova Teoria, «é a ciência, não de fazer o bem, mas de evitar, prevenir ou minimizar o mal» (p. 181). Ensina-nos a História que de boas intenções está o Inferno cheio e de tanto pretenderem fazer o bem Estados diversos chacinaram milhões com suas políticas de bondade, instaurando a barbárie, regrando o caos, atribuíndo à crueldade uma lógica éticamente insuportável. Neste sentido, o livro de Miguel Real é um interessante apelo à reflexão, uma reflexão que nos ajuda a libertar mais um pouco daquilo a que o próprio chama um «estado de infantilidade e barbárie» da humanidade. Dito de outro modo, a darmos um passo na direcção de um estado expurgado do “indiferentismo, passividade ou permissividade” que vão justificando no Poder uma oligarquia de tecnocratas «totalmente desacompanhados de uma dimensão cultural e espiritual para a sociedade» (p. 19).
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