sábado, 17 de março de 2012

TEORIAS

Nada foi deixado ao acaso neste afectuoso objecto, e esse é o seu maior defeito. Quem olhe a capa atentamente perceberá o contraste estabelecido entre a paisagem reproduzida e o título de índole racionalista. A ausência do nome do autor, desfeita apenas no cólofon, não é original. Pode, inclusivamente, ser entendida como uma espécie de homenagem à discrição de Fernando Guerreiro, poeta cuja sombra paira sobre estas Teorias (edição de autor, Novembro de 2011). Mas a poesia de manuel a. domingos (n. 1977) pouco tem que ver com a de Guerreiro, autor essencialmente reflexivo e torrencial. Neste caso os poemas são de uma verticalidade desnudada que lembra William Carlos Williams na forma, embora estejam muito mais próximos, em termos de conteúdo, do minimalismo de um Raymond Carver. De certo modo, a paisagem fria e melancólica (mas reconfortante) da fotografia que ilustra a capa pode induzir em erro. Há qualquer coisa de contemplativo naquele olhar que os poemas de manuel a. domingos recusam. Nos poemas o olhar como que se interroga desassombradamente, deixando o leitor no centro de uma ponte que liga a margem da dúvida à margem do vazio. Não sendo contemplativa, a poesia de manuel a. domingos é quase narcisista. Ilude-nos com a sua auto-ironia, rasteira-nos com um cinismo natural, deixando-nos caídos e desarmados perante uma essencialidade que a vida nos obriga a negar sob pena de parecermos superficiais. Mas a verdade é que somos, não podemos fugir a isso como da morte foge um ser vivo. As teorias tocam na ferida com a sua voz silenciosa, depurada, objectiva, directa, crucial. Arrumadas em jeito de tratado, com direito a bibliografia e tudo, as teorias aqui apresentadas resumem uma atitude, um modo de estar e uma perspectiva que enjeitam o lirismo expressivo de muita da poesia portuguesa actual, fugindo de conotações e de rótulos tanto à esquerda de um confessionalismo urbano-depressivo como à direita de uma metaforização académica do mundo. Falar de simplicidade não é suficiente, pois a simplicidade carrega demasiada complexidade no imo do corpo. A natureza da poesia, tanto quanto a cagança humana que a deforma, são aqui tema, mas em relação permanente com um quotidiano desdenhoso de si próprio. Note-se como, logo num dos primeiros poemas, três registos claramente frugais estabelecem entre si todo um clima de rara beleza: «Uma mulher / grita / contra um gafanhoto // Uma criança / mostra / um desenho ao avô // Uma andorinha / faz / o reconhecimento // dos telhados» (p. 17). Ou como a impossibilidade da poesia, minada pelos afazeres diários e a monotonia das obrigações, resulta paradoxalmente em poema: «Todas as noites / procuras escrever // um ou dois / versos // Hoje / essa hipótese // foi // por água / abaixo // Na televisão / alguém promete // bons / resultados // num redutor / abdominal» (p. 38). A ironia que anima estes poemas é, afinal, a mesma que nos permite manter o mundo suportável. No limite do tempo vamos desperdiçando tempo; ainda que nada tenhamos a dizer, dizemo-lo; decalcamos o passado como se tivéssemos presente, enganados que vamos andando acerca do futuro; emigramos dentro de nós mesmos, somos estrangeiros em casa própria para que doa menos. E nada disto garante o percurso simplista, mas deveras autêntico, denunciado numa das secções deste livro, a secção intitulada Teoria da Literatura. É aí que a figura do poeta pós-moderno irrompe como uma monstruosidade germinada no corpo do homem comum. Triste destino para quem procura apenas o ar respirável de uma paisagem fria e desnudada. Teorias pode e deve ser encomendado ao seu autor. Foram feitos 100 exemplares. Talvez ainda se encontre um ali.

1 comentário:

Nina Owls disse...

Dei comigo a pensar se este Manuel A Domingos foi o que escreveu as experiências de quasi-morte, que foi meu professor de neuropsicologia na licenciatura de psicologia...mas continuo a achar que o meu professor não teria veia de poeta, tendo em conta dominar as sinapses e o mapeamento cerebral....fiquei com curiosidade da poesia deste autor. E já fui a alguns blogs de acesso negado e outros de reflexões diárias....