domingo, 15 de abril de 2012

ESTRUME

Camarada Van Zeller, a semana que passou foi rica em faits divers. O país parece um arraial de coscuvilhice, uma festa na Parque Escolar com suas picarescas personagens. Ali a histérica, acolá a carpideira, além a paranóica. E na sombra, eu e o camarada, a contar tostões para fazermos face às despesas. Queixa-se a histérica das restrições ao fumo, uma perseguição proibitiva sem precedentes, uma ditadura da salubridade só comparável à tirania fiscalista que vai torturando os portugueses com o beneplácito duma infinda paciência e viagens a Cabo Verde nas férias da Páscoa. Pois que anda o Governo preocupado com os fumadores passivos, nomeadamente com as nossas criancinhas, vítimas de negligência familiar e de abusos papais. Talvez fosse preferível fazermos como os chineses, nossos estimáveis parceiros económicos, e fechá-las em fábricas onde poderiam brincar aos operários a bem do crescimento económico. Ou então entregá-las à Casa Pia, para servirem de modelo em vídeos caseiros de domingo à tarde. Não sendo assim, proíbe-se os progenitores portugueses de fumarem nos seus veículos quando acompanhados de crianças, os filhos do Estado português.

É preciso entender isto, camarada, as minhas filhas não são as minhas filhas, são as filhas do Estado português que, por obra e graça do Espírito Santo, as concebeu, pariu e protege. A mim cabe-me apenas criá-las segundo os ditames do legislador, produzir para poder fazer face às despesas. Qualquer dia, de tanto paternalismo proteccionista, ainda veremos as nossas criancinhas de volante na mão e cigarro na boca enquanto, no bando de trás, devidamente acondicionados, seguirão os terríveis pais da nação, a maior ameaça ao Sistema Nacional de Saúde alguma vez conhecida. Por coincidência, ou talvez não, enquanto se protegem os petizes fecham-se maternidades. Como diria o outro, isto anda tudo ligado. E disso se queixa a carpideira. Não percebo nada de maternidades, só fui pai duas vezes e em nenhuma delas tive que parir. Mas o Estado lá sabe e terá as suas razões, o Estado está farto de parir. Sobretudo abortos. Assim como assado, se havemos de sujeitar as crianças ao fumo dos pais o melhor é mesmo impedi-las de nascer. Fechando maternidades. Mais e melhor se funcionarem bem.

De resto, é cultura muito portuguesa e deveras respeitável. Os portugueses não gostam do que têm de bom. Sempre que descobrem uma qualidade, algo de agradável e positivo, algo que funciona bem nas suas estruturas, pessoas, instituições, não descansam enquanto não descobrem algo equivalente no estrangeiro, mas muito melhor, para poderem dizer mal de si próprios. Os portugueses respiram de dizer mal de si próprios, e só expiram em sentido contrário quando alguém de fora se encarrega de fazer o que todos os dias eles fazem cá dentro. Não foi assim com os Finlandeses? Quem tem razão é a paranóica, essa astuta coscuvilheira que já topou os elos obscuros, as ligações invisíveis, a trama sombria que está a ser engendrada debaixo dos olhos de todos nós, cegos que andamos a contar tostões para fazermos face às despesas. Ora notem bem: na mesma semana ficamos a saber do fecho da Maternidade Alfredo da Costa, da proibição de fumar junto às criancinhas indefesas e do aumento da idade da reforma para os 67 anos. Não haverá nestas três notícias uma insuspeita ligação?

É tudo uma questão de poupança, uma fórmula cogitada em Excel para a gestão do país ou, como veremos, de algumas pessoas do país que, bem vistas as coisas, são elas mesmas o país inteiro porque o resto, o lúmpen, é resto, não conta, escumalha, estrume. Vamos, assim como quem suspende a democracia, fechar uma maternidade. É um gesto simbólico. Fecha-se a torneira. Barra-se a natalidade. Enquanto tal, protegem-se os que cá estão, os já nascidos, as indefesas crianças que serão a mão-de-obra de amanhã. Garante-se-lhes uma vida saudável e robustez física, investindo, desse modo, nas suas futuras capacidades produtivas. Serão escravos fortes e agradecidos pelo proteccionismo do Estado, boas máquinas de produção, contribuintes perfeitos, branquinhos, alvos, puros, pacientes, mecanizados, submissos. E poderão produzir, trabalhar, descontar já não até aos 67 anos, mas até aos 76, a idade da reforma nesse tempo vindouro que será o deles. Ora, isto permitirá garantir o mais importante de tudo, o fundamental, isto é, a reforma da Presidenta da Assembleia da República e demais conformes:

A presidente da Assembleia da República, Assunção Esteves, recebe 7.255 euros de pensão por dez anos de trabalho como juíza do Tribunal Constitucional. Por não poder acumular esse valor com o ordenado de presidente do Parlamento, Assunção Esteves abdicou de receber pelo exercício do actual cargo, cujo salário é de 5.219,15 euros. Mantém, no entanto, o direito a ajudas de custo no valor de 2.133 euros. Assunção Esteves pôde reformar-se muito cedo, aos 42 anos, porque a lei de então contemplava um regime muito favorável para todos os juízes do Tribunal Constitucional. Podiam aposentar-se com 12 anos de serviço, independentemente da idade, ou com 40 anos de idade e dez anos de serviço. No Parlamento, mais 11 deputados e ex-deputados pediram uma subvenção vitalícia por terem exercido funções durante mais de 12 anos. As subvenções vitalícias dos deputados acabaram em 2005, mas o regime transitório faz com que ainda haja deputados mais antigos com esse direito. (fonte)

E é isto que importa, não mais do que isto, proteger essas criancinhas chamadas de deputados, presidentes e presidentas, garantir a felicidade dessa gente, trabalhar para que possam ser alegres, saudáveis, felizes e robustos, protegê-los do fumo de todos nós, protegê-los da poluição gerada pela nossa existência, paciente e submissa existência, existência- estrume, estrume-existência.

2 comentários:

Sujeito Oculto disse...

Vocês até que estão bem nesse aspecto, se comparados conosco.

Sujeito Oculto disse...

É. Foda-se.