Não era preciso ter lido Puta que os Pariu! A Biografia de Luiz Pacheco (Tinta-da-China, Novembro de 2011) — o artigo definido a antes do substantivo biografia é de uma saudável presunção — para perceber que o meio literário de hoje pouco mudou relativamente ao dos tempos da ditadura. Mudaram os tempos, não se mudaram as vontades. Na realidade, nos tempos da ditadura também não era diferente dos tempos da monarquia. Fialho de Almeida queixava-se do mesmo que Luiz Pacheco fez questão de denunciar. E antes de Fialho, Tomás Pinto Brandão. E antes deste, Camões. O problema será, então, cultural. Ainda que o chamado meio literário (uma partícula do meio artístico) faça questão de afirmar-se pela sua marginalidade relativamente ao meio social, o que observamos é uma adopção dos vícios apontados a este pelos actores daquele: elogio mútuo, arrivismo, jogos de interesses, intrigas palacianas (mesmo quando os palácios se transformam em currais), uma oligarquia movida por um nepotismo descarado. João Pedro George (n. 1972), sociólogo de formação, tem-se ocupado destes temas com méritos reconhecidos. Neste livro parte do exemplo outorgado por um sujeito particular para considerações gerais acerca do meio onde esse mesmo sujeito se moveu, seguindo, pois, uma lógica indutiva que não se furta a exaustiva fundamentação. Ao contrário de outras biografias, de cariz mais literário, em tom encomiástico ou crítico, esta é uma «biografia sociológica» que tem na sua origem uma pretensão específica: «analisar alguns fenómenos literários partindo da singularidade do percurso de um indivíduo» (p. 529). A vida do objecto de análise aparece, deste modo, organizada em grandes blocos temáticos: origens familiares, vida amorosa, actividade crítica, actividade editorial, afirmação enquanto escritor, os processos, as patologias, os últimos dias, o reconhecimento social. A grande vantagem desta organização é a possibilidade de explorar e aprofundar isoladamente cada uma das dimensões do indivíduo na sua relação com o meio. A desvantagem é um efeito de repetição ao qual a obra não escapa. Em capítulos diversos retomam-se situações já anteriormente abordadas, por vezes dificultando a leitura com imensas citações que não raro descambam para uma confusão de vozes nem sempre fácil de gerir. No entanto, esta não é uma obra fácil (nem isso era suposto). Ainda que os aspectos picarescos, anedóticos, cómicos ou tragicómicos da vida do visado possam estimular a procura do livro, cabe esclarecer que temos em mãos uma obra meticulosa e exigente no âmbito da sociologia cultural. Neste sentido, importa sublinhar a relevância de alguns aspectos que o estudo fundamenta: o esforço de Luiz Pacheco na sua afirmação enquanto escritor profissional resulta, em grande parte, de uma interiorização das frustrações patentes no contexto familiar; a sua grande obra foi a sua vida, a qual se confunde com os textos produzidos numa constante resistência aos diferentes agentes de socialização; a identidade de escritor maldito provém de uma paradoxal integração do autor num meio que legitima a marginalidade e, de certa forma, até a promove. O último capítulo deste livro é especialmente interessante na forma como aborda as representações identitárias no mundo dito literário. Pacheco não era marginal porque desde muito cedo penetrou o meio, ainda que em permanente relação de conflito com o mesmo. Esta relação de conflito acabou por lhe ser favorável em termos de afirmação de uma identidade, a do escritor maldito: «Colocar-se fora do meio ou das suas regiões dominantes é uma forma de estabelecer uma distância estando ao mesmo tempo dentro e fora. Dentro, porque se trata de agentes activos no meio, fora, porque, no discurso, reproduz-se uma das ideias necessárias para entrar — mesmo que superficialmente — no regime de singularidade» (p. 500). Em suma, «quanto mais marginal, mais central» (p. 501). O excêntrico/maldito é já uma personagem criada por aqueles que buscam modelos, símbolos, referências para a afirmação da sua independência. Entendidas as regras do jogo, talvez não seja má ideia termos em conta que o grande drama, se assim podemos dizer, de Luiz Pacheco foi a intransigência numa atitude coerente face às decisões tomadas desde muito cedo. Repare-se que as origens burguesas faziam prever tudo menos aquilo que sucedeu. Essa ruptura começa, ou pelo menos tem aí um momento simbólico, com o pedido de demissão da Inspecção dos Espectáculos, a 6 de Julho de 1959, após 15 anos de exercício de uma actividade ligada aos modelos de censura praticados pelo Estado de então. Com este gesto Luiz Pacheco iniciará um percurso na demanda da coerência, sobre o qual pesavam já 34 anos (nasceu em 1925) de existência em contradição consigo próprio e com a ambição de uma liberdade, autonomia e independência que extravasavam as normais convenções sociais. O resto é uma vida que esbofeteia a todo o momento as desculpas e os subterfúgios geralmente invocados por aqueles que, pretendendo ser livres (e também livros), não agem/arriscam para lá do razoável.
sábado, 7 de abril de 2012
PUTA QUE OS PARIU! A BIOGRAFIA DE LUIZ PACHECO
Não era preciso ter lido Puta que os Pariu! A Biografia de Luiz Pacheco (Tinta-da-China, Novembro de 2011) — o artigo definido a antes do substantivo biografia é de uma saudável presunção — para perceber que o meio literário de hoje pouco mudou relativamente ao dos tempos da ditadura. Mudaram os tempos, não se mudaram as vontades. Na realidade, nos tempos da ditadura também não era diferente dos tempos da monarquia. Fialho de Almeida queixava-se do mesmo que Luiz Pacheco fez questão de denunciar. E antes de Fialho, Tomás Pinto Brandão. E antes deste, Camões. O problema será, então, cultural. Ainda que o chamado meio literário (uma partícula do meio artístico) faça questão de afirmar-se pela sua marginalidade relativamente ao meio social, o que observamos é uma adopção dos vícios apontados a este pelos actores daquele: elogio mútuo, arrivismo, jogos de interesses, intrigas palacianas (mesmo quando os palácios se transformam em currais), uma oligarquia movida por um nepotismo descarado. João Pedro George (n. 1972), sociólogo de formação, tem-se ocupado destes temas com méritos reconhecidos. Neste livro parte do exemplo outorgado por um sujeito particular para considerações gerais acerca do meio onde esse mesmo sujeito se moveu, seguindo, pois, uma lógica indutiva que não se furta a exaustiva fundamentação. Ao contrário de outras biografias, de cariz mais literário, em tom encomiástico ou crítico, esta é uma «biografia sociológica» que tem na sua origem uma pretensão específica: «analisar alguns fenómenos literários partindo da singularidade do percurso de um indivíduo» (p. 529). A vida do objecto de análise aparece, deste modo, organizada em grandes blocos temáticos: origens familiares, vida amorosa, actividade crítica, actividade editorial, afirmação enquanto escritor, os processos, as patologias, os últimos dias, o reconhecimento social. A grande vantagem desta organização é a possibilidade de explorar e aprofundar isoladamente cada uma das dimensões do indivíduo na sua relação com o meio. A desvantagem é um efeito de repetição ao qual a obra não escapa. Em capítulos diversos retomam-se situações já anteriormente abordadas, por vezes dificultando a leitura com imensas citações que não raro descambam para uma confusão de vozes nem sempre fácil de gerir. No entanto, esta não é uma obra fácil (nem isso era suposto). Ainda que os aspectos picarescos, anedóticos, cómicos ou tragicómicos da vida do visado possam estimular a procura do livro, cabe esclarecer que temos em mãos uma obra meticulosa e exigente no âmbito da sociologia cultural. Neste sentido, importa sublinhar a relevância de alguns aspectos que o estudo fundamenta: o esforço de Luiz Pacheco na sua afirmação enquanto escritor profissional resulta, em grande parte, de uma interiorização das frustrações patentes no contexto familiar; a sua grande obra foi a sua vida, a qual se confunde com os textos produzidos numa constante resistência aos diferentes agentes de socialização; a identidade de escritor maldito provém de uma paradoxal integração do autor num meio que legitima a marginalidade e, de certa forma, até a promove. O último capítulo deste livro é especialmente interessante na forma como aborda as representações identitárias no mundo dito literário. Pacheco não era marginal porque desde muito cedo penetrou o meio, ainda que em permanente relação de conflito com o mesmo. Esta relação de conflito acabou por lhe ser favorável em termos de afirmação de uma identidade, a do escritor maldito: «Colocar-se fora do meio ou das suas regiões dominantes é uma forma de estabelecer uma distância estando ao mesmo tempo dentro e fora. Dentro, porque se trata de agentes activos no meio, fora, porque, no discurso, reproduz-se uma das ideias necessárias para entrar — mesmo que superficialmente — no regime de singularidade» (p. 500). Em suma, «quanto mais marginal, mais central» (p. 501). O excêntrico/maldito é já uma personagem criada por aqueles que buscam modelos, símbolos, referências para a afirmação da sua independência. Entendidas as regras do jogo, talvez não seja má ideia termos em conta que o grande drama, se assim podemos dizer, de Luiz Pacheco foi a intransigência numa atitude coerente face às decisões tomadas desde muito cedo. Repare-se que as origens burguesas faziam prever tudo menos aquilo que sucedeu. Essa ruptura começa, ou pelo menos tem aí um momento simbólico, com o pedido de demissão da Inspecção dos Espectáculos, a 6 de Julho de 1959, após 15 anos de exercício de uma actividade ligada aos modelos de censura praticados pelo Estado de então. Com este gesto Luiz Pacheco iniciará um percurso na demanda da coerência, sobre o qual pesavam já 34 anos (nasceu em 1925) de existência em contradição consigo próprio e com a ambição de uma liberdade, autonomia e independência que extravasavam as normais convenções sociais. O resto é uma vida que esbofeteia a todo o momento as desculpas e os subterfúgios geralmente invocados por aqueles que, pretendendo ser livres (e também livros), não agem/arriscam para lá do razoável.
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1 comentário:
Gosto muito do Luiz Pacheco, é um ídolo (mas distante, não tenho os tomates dele para essas coisas de agir para lá do razoável) e do João Pedro Jorge também.
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