quinta-feira, 5 de abril de 2012

PUTA QUE OS PARIU!

A páginas trezentas sinto necessidade de pausar. A biografia de Luiz Pacheco (1925-2008) não é remédio que se recomende a alma burguesa em permanente estado de negação. Nem as origens, de filho único nascido em ambiente dito favorável, talvez não tanto devido às zangas entre pai e mãe, permitem um distanciamento que nos desvie das repetidas bofetadas que a história nos vai dando. João Pedro George (n. 1972) sublinha a raiz sociológica que separa este trabalho de uma mera reconstituição biográfica em estilo encomiástico, mas não foge aos detalhes de uma vida transformada em obra – entrando por ela adentro, especulando o menos possível, fundamentando exaustivamente com citações do visado ou depoimentos alheios (menos), traçando linhas que nos permitem reconstituir percursos e compreender opções. Tendo em conta a enormidade de material disponível, devidamente inventariado em cinquenta páginas de fontes bibliográficas, supomos que o difícil tenha sido escolher, optar, organizar, colar. Dividir a obra em vários domínios de análise, partindo a história de vida em blocos onde essa mesma vida se foi consumando e consumindo, é opção com inegáveis virtudes mas alguns vícios, o pior dos quais o risco, nem sempre superado, da repetição (sublinhados, citações, casos, pormenores). Expurgados os elementos anedóticos, caricatos, risíveis, picarescos, por demais divulgados e promovidos, fica o eco de uma seriedade intransigente no tratamento ideológico da família (uma tribo de oito filhos e variadíssimas paixões) e da coisa cultural, assim como uma obstinada, tanto quanto desenfreada, busca de afirmação no meio literário português, o qual, paradoxalmente, foi sempre alvo das mais acirradas críticas pachecais: «a coesão da família (a par dos projectos literários) era uma das suas maiores preocupação» (p. 142, sic). São muitas as dúvidas que emergem ao longo da leitura: como pôde um corpo frágil e débil hospedar personalidade tão determinada e intransigente? Como foi possível conciliar essa intransigência ética (não moral) com uma flexibilidade e jogo de anca a que obrigavam a necessidade e as privações? Parece haver qualquer coisa de patológico na personalidade de Luiz Pacheco, uma espécie de orgulho desmesurado que deixaremos a cargo dos tratadores da psique, ao mesmo tempo que lhe admiramos a reivindicação de uma liberdade que só conhece paralelo na velha tradição cínica (uma vida de cão/gente também se aplica à vida de Pacheco). Desprendimento, indigência, vagabundagem, desinteresse pelas coisas materiais foram, afinal, as únicas leis respeitadas por Diógenes de Sínope e séquitos, tendo sempre por mira a afirmação de uma liberdade sem escusas (leia-se O Caso do Pai-Chocadeira, memorável manifesto anti-desculpas-esfarrapadas). E no entanto estamos a falar de um jovem aluno regrado, gaguejante (inseguro? nervoso?), que abandonou a vida académica por desinteresse familiar e inadaptação (desculpa? orgulho?), não seguiu em viagem recreativa para o Ultramar por não saber nadar, ficou-se por Roma numa fuga para o Egipto, engatava jovens mulheres iletradas (mais fáceis?), inspector de um organismo pidesco como o SNI durante quinze anos… A figura do pai (escritor falhado?) terá sido determinante na formação da personalidade de Luiz Pacheco, o qual terá projectado em si uma vontade de afirmação daquilo que o pai nunca conseguiu ser. Especulamos. Nos subterrâneos da vida íntima, ou o contrário, não sabemos, uma desmedida e desbocada ambição, uma vontade de dar nas vistas, desbravar um terreno de intrigas, polémicas fúteis, ânsia de poder e de admiração, ataques de orgulho contra capelinhas e disfarces ideológicos com o mesmo horizonte em vista: o frugal prestígio que um país de saloios como o nosso tem para oferecer. Tudo isto como se por fora de uma situação que alimenta(va) tanto os seus carrascos como as suas vítimas. Não é diferente hoje em dia, mudaram apenas os nomes (às vezes nem isso). O ambiente balofo de comunidade, com suas manigâncias e atençõezinhas, mantém-se inalterado, embora agora seja apregoado e desavergonhadamente fomentado como se fosse a mais natural das inevitabilidades. Retomemos a leitura.

1 comentário:

Anónimo disse...

Fui ver ontem o " O Libertino passeia por Braga ...a idolátrica, o seu esplendor" na sala Estúdio do Teatro Mário Viegas, em monólogo do actor André Louro e agora vi o teu post....coincidências;-)
Gostei bastante da peça - texto e actor-.Vale a pena.