terça-feira, 15 de maio de 2012

ENTRAR NO NADA

É por vezes referido que a perda da mãe aos cinco anos, e da irmã mais nova dez anos depois, terão contribuído para uma crise religiosa em Stéphane Mallarmé, cujas implicações não são fáceis de descortinar. Para uns, estes eventos abriram no poeta as portas da descrença; para outros, inauguraram a busca de um mundo alternativo à realidade experimentada. Não tão referido é o facto de Mallarmé ter confessado a ausência de qualquer emoção perante a morte da mãe, a ponto de haver simulado uma profunda consternação como forma de convencer as pessoas à sua volta de um sofrimento que não sentia. É compreensível que assim tivesse sido, se nos atentarmos ao facto de se tratar de uma criança de cinco anos criada por uma ama de leite. Foi nesta ama que ele projectou os sentimentos geralmente guardados para uma mãe, e foi ao afastar-se dela que a dor da separação realmente se manifestou. Há nesta encenação primaveril uma curiosa coincidência com a obra do poeta francês. Mais do que exprimir um sentimento, que no caso seria a ausência de qualquer expressão, ele representa a realidade buscando uma concordância entre o que esperam dele e o que ele tem realmente para dar. É o poeta fingidor na sua máxima afirmação, fingindo ser dor a dor que deveras sente. Uma dor que, no fundo, se manifesta na incomodativa e insuportável ausência de emoção.

Não me parece demasiado rebuscado que um pequeno texto como Crise de Versos (Deriva, Agosto de 2011, trad. Rosa Maria Martelo) reflicta, de algum modo, este desconchavo. «Toda a alma é uma melodia, que urge encadear; e para tal servem a flauta ou viola de arco de cada um» (p. 19). O texto anuncia um novo estilo poético, moderno, liberto de constrangimentos formais como as métricas herdadas dos clássicos, muito mais preocupado em respeitar a respiração de quem escreve e a musicalidade das palavras. Na realidade não se trata de preocupação, pelo menos não tanto quanto parece tratar-se da declaração de um propósito onde na ruptura germina a necessidade da voz libertada. Cito a nota de leitura decorrente da tradução: «Crise de Versos mostra que a experimentação formal começa por ser vivida na figura de uma crise, como pathos. E não simplesmente crise de uma convenção, de metros entronizados numa cultura, mas crise da própria cultura e do pensamento ocidental como um todo» (p. 43). Seja como for, quando falamos de crise dificilmente escapamos à epistemologia de Thomas S. Kuhn. E assim somos levados a pensar na crise como uma fase de ruptura onde um paradigma dará lugar a outro paradigma, pretenda-se ele ou não enquanto negação do próprio conceito de paradigma.

Sabemos hoje qual o resultado da acção libertadora das formas, embora nos pese constatar que, em imensos casos, essa libertação degenerou numa descarada falsificação do texto, isto é, numa completa mistificação do real. Isso constata-se, sobretudo, nos poetas onde a experiência mais supostamente pesaria enquanto matéria-prima do poema. Damos por nós, deste modo, a ler ruínas onde apenas sentimos salas almofadadas, uma revolta de café com encontro marcado na galeria para apresentação da mais recente promessa literária, uma experiência de Universidade com os sentidos roubados nos livros lidos verticalmente, corpos de plásticos, cheiros de plástico, vagabundagem desenhada em estúdio patrocinado pela família, erudição de amigos certos, no lugar certo para reconhecimento certo e imediato. Actualmente a crise está, pois, no desrespeito pela verdade, numa deturpação dos factos, na subserviência ao Estilo enquanto arquitecto mor das aparências que se tomam por essências. É uma crise claramente social transportada para o interior da criação, porque o poeta, neste caso, já não escapa à sociedade, não é um ser em confronto com mas antes um produto da mesma, não é um resistente, mas sim um desistente, resignado à inutilidade da sua produção. No fundo, uma comunidade de minúsculos Mallarmé encenando as dores que nunca sentiram, de modo a que quem está à volta reconheça um sofrimento que nunca se experienciou. Em nome do estatuto, de um prestígio situado e circunstancial, de uma estúpida e inglória canonização. Ainda bem para as pessoas que existem nos poetas. Triste destino, no entanto, para a poesia ela mesma.

2 comentários:

Anónimo disse...

O que escreve na última parte do seu ensaio dava todo um tratado sobre a mentalidade portuguesa - que não consta nos estudos de Eduardo Lourenço. Vivemos num país em que cada vez mais apetece contar a história do rei que ia nu...

hmbf disse...

Também não deixa de ser "sintomático" o anonimato do comentário. De facto o rei vai nu, de cara escondida com medo sabe-se lá de quê...