sábado, 19 de maio de 2012

THE NEW WORLD



O menos aclamado dos filmes de Terrence Malick recupera a história de Pocahontas, uma índia powhatan que, depois de ter sido expulsa da sua tribo na sequência de uma relação com o lendário capitão John Smith, acabou casada com o explorador inglês John Rolfe e transformada em celebridade do Novo Mundo pela aristocracia britânica. Factos cuja veracidade terá sido moldada, ao longo dos tempos, por uma grande dose de oportunismo. The New World (2005) não escapa incólume ao mito, oferecendo uma perspectiva alegórica, para não dizer ingénua, da colonização das américas e dos violentíssimos processos de aculturação que a acompanharam. No entanto, safa-se da desgraça quando se concentra nos dilemas de Pocahontas (representada por uma desconhecida, mas belíssima, Q’Orianka Kilcher que, à data das filmagens, tinha apenas 14 anos).

A evocação inicial do grande Espírito da Terra estabelece o contacto com a forma de pensamento índio, ao mesmo tempo que mapeia a formação de um Novo Mundo erigido sobre as cinzas duma existência humana fundada na comunhão com a Natureza. A chegada das caravelas às terras agora conhecidas pelo nome de Virgínia, em 1607, marca, precisamente, o princípio do fim de um mundo primitivo e selvagem. São óbvias as relações com The Thin Red Line (1998), sobretudo nas cenas onde se recria a vida dos indígenas no seio da floresta. Porém, quem leia um pouco sobre o assunto apercebe-se da visão adulterada que a história nos fez chegar em dois sentidos divergentes. Os colonos ali aportados não encontraram nem o Inferno, desse andavam fugidos, nem o Paraíso, que, sabemos hoje, só existe na imaginação celestial dos crentes. O que ali havia era um modus vivendi sem conflitos com a Natureza, porque conflitos entre os homens sempre se viram em todos os lugares.

São, pois, simplórias as descrições do malogrado capitão John Smith (Colin Farrell) quando fala de um povo sem maldade. Não são tão simplórias quando chama a atenção para o essencial: os índios viviam em função da necessidade, entre eles não predominava o sentido de propriedade, que já o sargento Edward Welsh havia denunciado, em The Thin Red Line, como causa dos infernos para os quais o homem se atira. Rebelde e desobediente entre os seus, John Smith tem a pesar sobre si uma insuportável condenação. Falhará toda a vida, mormente onde menos deveria falhar: no amor. A sua paixão por uma indígena colocou-o no centro de um conflito onde, muito provavelmente, nunca pretendeu estar. Percebe-se a metáfora quando Malick o filma entre a tribo aberta dos powhatan e o forte dos colonos, a destruir árvores que servirão de paliçadas, uma fronteira traçada por obrigação contra as vontades de um estranho sentimento.

Os filmes de Malick estão repletos destas contradições, embora neste a atitude dicotómica seja talvez mais evidente. Onde se vivia em liberdade, passa a viver-se com medo, constroem-se torres de vigia, impõem-se leis severas que prevêem castigos cruéis e desumanos para os desobedientes. Pocahontas desobedece e é afastada da tribo, John desobedece e é chicoteado, obrigado a trabalhos forçados após vigílias permanentes pendurado pelos pés. Quem são os selvagens? Talvez não seja esta a dúvida essencial. Não o será, certamente, e disso nos apercebemos quando vemos Pocahontas deitada nas ervas e a confundimos com o tronco de uma árvore. Aqui, os opostos estimulam sentimentos diferentes, dúvidas antagónicas, emoções paradoxais. Não é por isso de estranhar que Smith abandone Pocahontas e regresse a Inglaterra com a missão de novas descobertas.

Pede o capitão que informem posteriormente a sua amada de uma morte inexistente, quer ser esquecido sem poder esquecer. Julga ser possível a felicidade dos outros sem se oferecer a quem o anseia para ser feliz. Mais uma vez, o que ressalta é a degradação da pureza no coração dos homens, o assalto da loucura que leva Smith a pensar se não seria melhor voltar a subir o rio, amar Pocahontas na natureza selvagem, soltar-se, ser livre... acabando por fazer exactamente o contrário. Porque entre o desejo e a acção há algo que o tolda, algo muito mais forte do que os grilhões a que o vemos preso no primeiro dos planos em que aparece. O quê? Talvez amar sem perceber o amor.

Contudo, antes e depois de John Smith esta é a história de Pocahontas (baptizada Rebecca, aliás, em nome do pai do filho e do espírito santo). Levada até ao Velho Mundo por um viúvo identificado com a sua dor, o colono John Rolfe (Christian Bale), ela apercebe-se da contradição em que vive. As cenas finais oferecem-nos indivíduos perturbados por uma série de interferências que impedem a sintonia entre o pensamento, o desejo e a acção. São personagens marcadas por uma espécie de anomalia que as faz tropeçar na mentira quando apenas pretendem verdade. Ver Pocahontas devidamente trajada entre a aristocracia britânica, olhando animais selvagens engaiolados para deleite de nobres palacianos, é como assistir a um funeral sem defunto.

Pior quando o reencontro com Smith, nos jardins geometricamente desenhados de um palácio, nos atira a realidade às fuças. Encontraste as tuas Índias, John? – pergunta ela. E ele baixa os olhos de vergonha, talvez, frustração, quem sabe. Hás-de encontrá-las, acrescenta. Ao que ele responde com a mais cruel das evidências: Talvez lhes tenha passado ao largo. Nada mais aconteceu nesta história de amor. Rebecca escolheu ficar com quem a soube amar. Fez muito bem. Cada qual é para o que nasce, e o malogrado John Smith, como é evidente, não tinha nascido para o amor.

4 comentários:

manuel a. domingos disse...

a caixa com os filmes deste Senhor passou a fazer parte da mobília a partir de hoje

hmbf disse...

Boa compra. :-)

CCF disse...

Gosto muito dos filmes dele, de todos e também deste que conta muito bem, gostei também da árvore da vida que muitos gostaram e outros odiaram.
~CC~

hmbf disse...

A Árvore da Vida virá a seguir, era preciso ir às raízes.